Injustiças " a la brasileira ": Por que tanto se descumpre a lei e ninguém faz nada?

Sexta Feira, 15 de Novembro de 2013

Os atalhos hermenêuticos
Há muito tenho insistido na tese de que uma lei votada pelo Parlamento só pode deixar de ser aplicada em seis hipóteses: a) se for inconstitucional, b) se for possível uma interpretação conforme a Constituição, c) se for o caso de nulidade parcial sem redução de texto, d) no caso de uma inconstitucionalidade parcial com redução de texto, e) se se estiver em face de resolução de antinomias e f) no caso do confronto entre regra e princípio (com as ressalvas hermenêuticas no que tange ao pamprincipiologismo). Fora disso, estar-se-á em face de ativismos, decisionismos ou coisa do gênero. Portanto, o judiciário possui amplo espaço. Nada mais, nada menos do que seis maneiras. Mas parece que, na cotidianidade, o judiciário prefere um atalho. Sim, um atalho silipsístico.
Um dos dispositivos que simboliza isso é o artigo 212 do Código de Processo Penal. Ali claramente está escrito que o juiz só pode fazer perguntas complementares quando da oitiva das testemunhas. Ali está inscrito o sistema acusatório. Juiz não faz prova. As partes é que fazem. Não é porque eu quero que seja assim. Simplesmente “está na lei”. O legislador, ao votar a nova redação do CPP, disse: não haverá mais inquisitivismo. Simples, pois.
O resultado, entretanto, é que o Judiciário, em sua maior parte, respaldado por equivocadas leituras do STJ e do próprio STF e por uma literatura jurídica conservadora e distante da Constituição, rasgou o texto legal. E onde está escrito “apenas perguntas complementares”, passou-se a ler, “continuemos a fazer audiências como era antes”. E a lei? Bem, a lei...
Um caso emblemáticoRecentemente, o TJ-RS, examinou o seguinte caso: em uma cidade do interior, o Promotor de Justiça não pôde comparecer à audiência e o juiz fez toda a prova, inquirindo testemunhas e tudo o mais. E depois, condenou o réu com base na prova que ele mesmo, juiz, produziu. O advogado fez uma preliminar alegando nulidade. O juiz rechaçou, do mesmo modo que o TJ fez na sequencia.
Na apelação, o desembargador relator votou pela nulidade, em preliminar. Com esse voto, a defesa interpôs embargos infringentes, que foram improvidos. Decidiu-se, assim, que o fato de o juiz ter de assumir a exclusividade da inquirição das testemunhas devido à ausência do promotor na audiência não-anula-o-processo-criminal. Afinal, segundo o Tribunal, os artigos 201 e 203 do CPP obrigam o julgador a ouvir vítimas e testemunhas para formar a sua convicção. Já de pronto podemos jogar com a hermenêutica: de fato os artigos 201 e 203 dizem isso... só que, logo depois, explicando como isso se dará, há um dispositivo, novinho em folha, o 212, que estabelece que o juiz não poderá inquirir as testemunhas, com exceção de perguntas complementares. Ah: “complementares”, ao que sei, complementam e, portanto, vem depois de alguma coisa, correto?
Mas o mais inusitado é que o juiz e o tribunal sustentaram que “a defesa não apontou o efetivo dano causado pelo fato de o juiz ter iniciado as perguntas.” Confesso que não entendi. Como assim? O sujeito foi condenado a sete anos e meio de reclusão, com prova feita exclusivamente pelo juiz e ainda assim necessita provar que houve prejuízo?
Outro ponto interessante é que a relatora dos embargos, no grupo, sustentou que a nulidade prevista no artigo 564, inciso III, alínea ‘d’, do CPP, é relativa e foi considerada sanada. E isto porque a irregularidade (sic) não foi arguida em tempo oportuno, como prevê o artigo 572 do mesmo diploma legal. Mas o que diz o artigo 564, III, “d”, do CPP? “A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: III — por falta das fórmulas ou dos termos seguintes: d) a intervenção do Ministério Público em todos os termos da ação por ele intentada e nos da intentada pela parte ofendida, quando se tratar de crime de ação pública.”
Pronto. Isso não quer dizer nada? Se o MP não está na audiência, não faz a prova, tal circunstância não se enquadra na hipótese desse dispositivo? Mais: somando a clareza meridiana do artigo 212 com a do artigo 564, III, d, a pergunta é: poderia a audiência ser realizada? E, se sim, como ultrapassar a nulidade decorrente da prova feita pelo juiz?
Ainda: onde está escrito que essa nulidade é relativa? E onde está escrito que o advogado deve “protestar” em tempo hábil? Não seriam as regras que estabelecem o sistema acusatório “regras procedimentais de direitos fundamentais” e, por isso, a simples violação já não acarretaria nulidade insanável? Aliás: diz-se, hoje, que todas as nulidades são relativas. Pois é. E digo eu: se tudo é, nada é. Logo, todas não são relativas. Questão de lógica.
Convenhamos: o juiz fez a prova. Fez as perguntas às testemunhas. De que modo? Ora, o inquisidor só faz perguntas que venham a sustentar a decisão que ele já tomou. Esse é o cerne do inquisitivismo. O resultado já está dado. Busca, então, a argumentação. Por isso, o prejuízo é evidente. E é por isso que as provas devem ser feitas pela defesa e pelo MP.
Tentarei ser mais claro: o juiz que conduz a produção da prova, por mais bem intencionado que seja, termina se contaminando pelo objeto da busca, saindo do seu lugar de isenção. Vincula-se psicologicamente ao que procura. E como diz o adágio, “quem procura, acha”. E por que procura? Diante do princípio constitucional da presunção de inocência — que impõe à acusação o ônus de buscar provas — qual a motivação de um juiz que se substitui ao acusador? Será que alguém desinteressado, imparcial, procuraria? Indo mais a fundo, o que motiva alguém que deve estar em um lugar imparcial a produzir provas? Essa separação de funções no processo, em todos os seus atos e em todas as fases, é uma garantia não só para o acusado, mas para a sociedade.
A justificativa mais comum para essa anomalia na atuação do juiz se dá com base no falacioso princípio da “verdade real”. Vai-se no guarda-roupas do voluntarismo, despe-se da toga e veste a beca da acusação. E por que a da acusação? Porque o ônus de provar o alegado é do acusador. Ora, se a função do acusador é comprovar a materialidade a e autoria dos fatos, o magistrado que também investiga termina por usurpar a prerrogativa do Ministério Público nesse ônus. Sai do seu lugar de fala imparcial. A cadeira do juiz fica vazia. Onde isso ocorria? Na inquisição. A missão do juiz em uma democracia tem que ser maior do que isso. Que deixe as partes atuarem e cumprirem seus papéis. O trabalho do juiz é o de resgatar a historicidade dos fatos. Atuar assim é elevar a função de juiz.
O furo é mais embaixoO caso pode nem ser importante (a não ser, é claro, para o réu, condenado a 7 anos e meio de reclusão, se me permitem a ironia). O mais importante é o simbólico. O STJ, o STF e os tribunais em geral insistem em descumprir a lei (pelo menos em parte considerável do território nacional). O STF, em vários HCs, decidiu que a nulidade decorrente do descumprimento do artigo 212 do CPP é relativa. Em um deles, disse que o advogado deveria “protestar”, sob pena de a nulidade ser convalidada. Impressionante como os limites semânticos valem tão pouco. E por que isso é assim? Porque continuamos a desconfiar do Parlamento. Consideramos o Parlamento impuro. Por isso, apostamos na virtuosidade — que seria sempre decorrente da técnica — do Judiciário. A técnica seria inerente apenas ao Judiciário. Consequentemente, como o Parlamento faz política, o faz sem técnica. Com isso, a política fica relegada a uma a-tecnicidade. Assim, a técnica corrige a lei, porque é mal feita, imprecisa, injusta.... E como fazemos isso? Com nossos juízos morais. Sim, substituímos os juízos que são do legislador pelos nossos. E por que os nossos seriam melhores do que daqueles que se elegem? Afinal, queremos uma demo-cracia ou uma juristo-cracia?




Fonte; Conjur
edição online de 14/11/13

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