Artigo: Súmula Não Vinculante 500 do STJ é inconstitucional e ilegal

Sábado 09 de Novembro de 2013


Por  Lenio Streck, *











Sou encanzinado com as súmulas, vinculantes ou não. Não é pelas súmulas “em si”, e, sim, pelo uso que delas se faz. As súmulas vinculantes não são um mal em si. Tenho referido isso há mais de 20 anos. Na verdade, desde 1995, quando escrevi pela primeira vez sobre esse instituto. As súmulas podem servir como um importante componente para firmar e colocar o selo jurídico em importantes avanços na jurisprudência, assim como para impedir interpretações que provoquem retrocesso hermenêutico.
As súmulas brasileiras são uma espécie de “jabuticaba”. Só existem por aqui. As suas similares portuguesas, chamadas de “assentos”, foram declaradas inconstitucionais já em 1996 (Acórdão do TC 743/96). Foi uma luta intensa travada — e ganha — pela doutrina do jusfilósofo António Castanheira Neves, que sempre sustentou a inadequação desse elemento “normativo” no sistema jurídico português. A análise de C. Neves é eminentemente hermenêutica, mostrando o caráter metafísico dos assentos. Dizia, inclusive, que eles representavam – e isso se aplica às nossas súmulas – a repristinação da jurisprudência dos conceitos (Begriffjurisprudenz). Cada assento ou cada súmula seria, guardadas as proporções e similitudes e diferenças, uma espécie de pandecta. Isto é, conceitos com pretensões de abarcar de antemão todas as hipóteses futuras de aplicação.
Mas a súmula brasileira é jabuticaba também pelo fato de se tentar compará-la aos precedentes dacommon law. Ora, lá um precedente é feito para resolver casos passados, de forma incidental. Aqui, ela é feita para justamente fazer o contrário: resolver, com pretensões de lei, todos os casos futuros. Trata-se, no fundo, de uma forma de antecipação de tutela hermenêutica. Uma cautelar de sentidos. Uma tentativa de “colocar” para dentro de um enunciado todas as coisas das quais esse enunciado trata em tese.
O caso da SNV (súmula não vinculante) 500, do STJDiante de um caso concreto, a estagiária Luiza Fruet entra no meu gabinete, acompanhada do estagiário Pedro Gil e do assessor Dieter Axt — tudo sob o olhar de atento de André Karam Trindade —, para dizer: “Foi aprovada a Súmula 500 pelo STJ e, segundo o senhor sustenta, ela não poderia ser editada nos moldes em que foi. Podemos sustentar, no caso tal, a sua não aplicabilidade?” Li a súmula, li o dispositivo legal e respondi: “ Sim, podem começar a trabalhar na tese”.
Assim, nasceu o parecer no processo 700.5680.8983 e o presente artigo. Com efeito, no caso concreto, o réu havia sido absolvido pelo juiz de primeiro grau, em face da ausência de prova acerca da materialidade do delito, isto é, não ficou provado que o menor já não estava corrompido ou de que a intenção do réu era corromper o inimputável (enfim, aquilo que se entende na dogmática penal acerca dos requisitos desse tipo penal).
Com o advento da SNV 500, ele deveria ser condenado. Deveria. Mas, se depender de mim e da Constituição, isto não deverá acontecer. A SNV 500 foi editada nos seguintes termos: “A configuração do crime previsto no artigo 244-B do Estatuto da Criança e do Adolescente independe da prova da efetiva corrupção do menor, por se tratar de delito formal.”
Ou seja, transformaram um crime material em formal. Dizendo de outro modo, a súmula transformou o crime de corrupção de menores em um delito de responsabilidade objetiva e não me consta que possa haver esse tipo de responsabilidade em um direito penal que queira se inserir no Estado Democrático contemporâneo. Com efeito, o delito em tela (artigo 244-B da Lei 8.069/90) é material. Logo, mister que exista nos autos prova escorreita dando conta da corrupção do adolescente, o que não se efetivou no caso concreto, sob pena de afronta ao próprio princípio da presunção de inocência. Ou seja, o Estado deve provar a lesividade.
Oportuno registrar o que afirmou o ministro Vicente Cernicchiaro (Recurso Especial 18.2471/PR) a respeito do vetusto artigo 1º da Lei 2.252/54, o qual teve sua redação transcrita para o atual artigo 244-B da Lei 8.069/90: “A Lei 2.252/54 visa a preservar o menor, punindo quem o iniciar na prática delituosa, ou seja, buscando sua colaboração material para a prática do crime. Todo crime é crime de resultado. Não basta a conduta. Imprescindível ocasionar impacto no objeto jurídico, trazendo dano, ou perigo de dano. Fora desse limite, o comportamento se faz atípico. Não há resultado presumido. Existe ou não existe! (...).” Parece que Cernicchiaro esgota a matéria. Simples e certeiro.
A par do problema de que a Súmula 500 ser incompatível com a lei e a Constituição — e isso explicitarei na sequencia, registro que a “aplicação” de uma súmula não pode ser feita a partir de um procedimento dedutivo. Não é possível, portanto, continuarmos a analisar os textos das súmulas como se ali fosse “o lugar da verdade” e como se o sentido “imanente” desse texto nos desse as respostas para sua futura aplicação. Cada enunciado sumular/jurisprudencial etc. tem um “DNA”. Esse “DNA” é a integridade e a coerência de que fala Dworkin. O “DNA” contém também, necessariamente, os genes da doutrina[1].
A seguir a Súmula 500 cegamente, sem indagar sobre a concretude cada caso, estaremos dizendo que, no enunciado sumular, está a “essência” de todas as corrupções de menores de terrae brasilis. Isso é uma questão filosófica de suma importância. Pensar assim é voltar à pré-modernidade, em que o homem estava assujeitado às essências. Algo como o “mito do dado”.
Nesse diapasão, de há muito critico a “pretensão sumular”. Explico: lamentavelmente, parece que a dogmática jurídica pretende construir enunciados assertóricos que “abarcam, de antemão, todas as possíveis hipóteses de aplicação. São respostas a priori, oferecidas antes das perguntas. Isto é, as súmulas são uma espécie de “antecipação do sentido”, uma “tutela antecipatória das palavras” ou, ainda, uma “atribuição de sentido inaudita altera parte...!”
Mais, ainda: cabe referir a vagueza e ambigüidade com que está redigida a súmula. Independerá saber, assim, quem de fato iniciou o adolescente na prática de crimes? Não será necessária a comprovação se de fato o acusado maior de idade realmente agiu de forma a corromper o inimputável?
Além disso, o dispositivo é antigarantista, porque estabelece, em outras palavras, que quem-de-qualquer-modo-praticar-delito-na-companhia-de-inimputável estará sujeito às penas da lei! Trata-se de uma súmula que pretende transformar o tipo penal do artigo 244-B, da Lei 8.069/90, em crime de mera conduta, algo incompatível com o moderno Estado Democrático de Direito.
Assim, insisto, entender que o simples fato de estar acompanhado de um inimputável, sem a devida comprovação se foi o imputável quem o corrompeu, é o mesmo que estabelecer uma universalização metafísico-essencialista ao texto da lei, perdendo-se o necessário caráter ôntico-ontológico (e portanto, hermenêutico) da interpretação.
Ora, vivemos em um Estado que se diz democrático de Direito, e devemos, portanto, nos valer dos princípios previstos na Constituição Federal para balizar o âmbito da tutela jurisdicional. Neste sentido, a vingar o entendimento contido na SNV 500, do STJ, tem-se a nítida violação do princípio da presunção de inocência, à medida que resta o acusado impossibilitado de exercer qualquer direito de defesa, pois se torna presumivelmente culpado. Eis, aí, a inconstitucionalidade da SNV 500.
E está violada, também, a separação de poderes. Mais uma inconstitucionalidade. Nitidamente a SNV 500, do STJ, “legisla”, criando direito novo. Ou seja, de que modo um tribunal pode editar um enunciado com pretensões normativas, no e pelo qual estabelece de antemão a não necessidade de comprovação do objeto do tipo penal, isto é, a corrupção de menores. Ora, o tipo penal diz que “corromper ou facilitar a corrupção”. Isto quer dizer o quê? Quais os limites semânticos? Simples: corromper o menor traz ínsita a obrigação de provar a corrupção. Parece acaciano isso. Não existe “corrupção em abstrato”. Ou melhor: não há que se falar em uma “metafísica da corrupção”. O direito não se compatibiliza com “conceitos sem coisas”, para utilizar uma linguagem hermenêutica.
Por último, é despiciendo lembrar que vinculantes somente são as súmulas do STF, autorizadas pela EC 45. As demais são meramente aconselhativas. E, no caso, não parece que o STJ tenha feito um “bom conselho” para a comunidade jurídica.
Numa palavra: as súmulas podem se constituir em importante mecanismo de reforço à integridade e coerência do direito. Mas, para tanto, devem ser adequadamente compreendidas — isto é, como textos jurídicos —, e aplicadas justamente a partir do respeito à integridade e à coerência do direito, bem como à estrita obediência do dever de fundamentar as decisões. Consequentemente, tais textos são sujeitos a interpretação[2].
Por fim, uma outra questão. Em tempos em que se diz por aí que o Judiciário não é ativista, este parece ser um bom exemplo de como se faz ativismo dizendo que não se está fazendo. Ora, há limites semânticos no dispositivo que estabelece o tipo penal da corrupção de menores. O STJ não poderia fazer uma interpretação in mala partem. Sim, a interpretação do STJ diz o que o legislador e a doutrina dominante nunca disseram.
Então, o que houve? O que ocorreu é que, no caso da SNV 500, o STJ substituiu-se ao legislador. Colocou na lei os juízos éticos, políticos e morais que não eram os do legislador.
Violou não somente os limites semânticos da lei (por isso, é ilegal), como também violou os princípios da presunção da inocência e da separação dos poderes.
E o que dizer da decisão do STF mandando dar posse a juiz no TRF-1?Na verdade, como venho insistindo, o Poder Judiciário somente pode deixar de aplicar uma lei (um dispositivo normativo em geral) em seis hipóteses, exaustivamente explicitadas em meu Jurisdição e Decisão Jurídica: a) se o dispositivo for inconstitucional, caso em que se resolve o problema em controle difuso ou concentrado; b) quando, na relação texto-norma, estivermos face a uma interpretação conforme a Constituição; c) em face de uma nulidade parcial sem redução de texto; d) em face de resolução de antinomias; e) em caso de inconstitucionalidade parcial com redução de texto e, f) em face da relação regra-princípio (por exemplo, o tipo penal do furto, uma regra, deixa de ser aplicada em face de um princípio, o da insignificância). E, alerte-se, essa questão fica mais aguda se se tratar de uma norma constitucional, que, como sabemos, não pode ser inconstitucional, se produto do constituinte originário. Logo, falar em limites semânticos na Constituição tem uma dimensão diferente de falar nesses limites nos textos infraconstitucionais, conforme deixo claro em vários outros textos e livros.
Fora dessas hipóteses, o Poder Judiciário deve aplicar a lei ou o dispositivo legal. Fora dessas hipóteses, será ativismo. Aliás, como foi a recente decisão monocrática do ministro Luiz Fux, que determinou, no MS 32.461, que um juiz tomasse posse no TRF-1 sem a escolha-nomeação da presidente da República. Vejamos: já no limite de idade parece que os limites semânticos impedem a hermenêutica feita pelo ministro. Mas, deixando de barato, afirmo: enquanto discutiu-se a contradição secundária — aplicação do limite de idade — deixou-se de fora o cerne da questão: somente a Presidente da República pode nomear alguém para esse cargo. Se o cargo de Desembargador Federal fosse decorrente de simples promoção, por que então a lista e a escolha-nomeação por parte do chefe do Poder Executivo? Daí minha pergunta: como assim “independentemente de sua nomeação por ato da excelentíssima senhora presidente da República”? Não é implicância minha, mas não creio que o Poder Judiciário, no caso, o STF, esteja autorizado para isso. Depois a professora Thamy Pogrebinschi diz que não há ativismo em terrae brasilis. Pois é.

[1] STRECK, Lenio Luiz. Direito Sumular [Dezembro, 2008]. São Paulo: Carta Forense. Edição nº 67, páginas 42/43.
[2] STRECK, Lenio Luiz, ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes?
2ª edição, revista atualizada e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013






Fonte: Conjur
na íntegra
foto do site juonline.com.br

* jurista de formação tem doutorado pela UFSC e pós-doutorado pela Universidade de Lisboa.. Desde 2003 é Membro Catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), sendo também Presidente de Honra  do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Um dos maires palestrantes de direito, Brasil afora e noexterior.  Streck é autor ou co-autor de dezenas de livros que versam sobre hermenêutica jurídicadireito constitucionaldireito processual e direito penal. Sua última obra, O que é isto - decido conforme minha consciência?, publicada pela Livraria do Advogado, é o primeiro volume de uma coleção lançada pelo autor (Coleção "O que é isto?"), sendo considerada um libelo contra as diversas formas de decisionismo judicial..
é Pocurador de Justiça do MP do Rio Grande do Sul. ( Fonte: pt. wikipedia. org )

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