Rio:Juíza Federal recebe denúncia do famoso " caso Riocentro "
Quarta feira, 21 de maio de 2014
Em excelente decisão da Juíza Federal Ana Paula Vieira de Carvalho, a denúncia foi recebida, dando início à ação penal contra os militares, que responderão pelos crimes de tentativa de homicídio doloso, associação em organização criminosa, transporte de explosivos, favorecimento pessoal e fraude processual.
Por se tratar de crimes contra a humanidade, segundo princípio geral de direito internacional e resoluções da ONU - Organização das Nações Unidas, considerou-se não ter ocorrido a prescrição, que é o prazo determinado que o Estado tem para processar uma pessoa. Conforme o crime, esse prazo varia de 3 anos (crimes leves, com pena máxima de 1 ano de detenção) até 20 anos (para os crimes mais graves, com pena máxima superior a 12 anos, como o homicídio).
A decisão segue abaixo transcrita. A sentença foi assinada eletronicamente e a autenticidade pode ser conferida (Certificação digital pertencente a ANA PAULA VIEIRA DE CARVALHO.
Documento No: 69639410-1-0-1-10-780340 - consulta à autenticidade do documento através do site www.jfrj.jus.br/autenticidade)
É um marco histórico. É o Ministério Público Federal defendendo os direitos humanos e a sociedade.
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Processo nº 0017766-09.2014.4.02.5101 (2014.51.01.017766-5)
Vistos, etc.
1. Trata-se de denúncia oferecida pelo MPF em desfavor de WILSON LUIZ
CHAVES MACHADO, CLAUDIO ANTONIO GUERRA, NILTON DE
ALBUQUERQUE CERQUEIRA, NEWTON ARAUJO DE OLIVEIRA E CRUZ,
EDSON SA ROCHA e DIVANY CARVALHO BARROS, imputando-lhes os crimes de tentativa de homicídio doloso, associação em organização criminosa, transporte de explosivos, favorecimento pessoal e fraude processual, em razão de participação no episódio conhecido como o atentado a bomba no Riocentro.
Algumas questões jurídicas, entretanto, precisam ser enfrentadas antes de se analisar a existência de suporte probatório mínimo para recebimento da exordial. Passo, pois, ao seu exame sucinto.
2. COMPETÊNCIA E COISA JULGADA
Inicialmente, tenho por competente a justiça comum federal para julgamento dos fatos.
Deveras, os militares supostamente envolvidos não estavam no exercício de atividade militar, em serviço militar ou atuando em razão da função militar. Daí porque não se aplica aos fatos o conceito de crime militar previsto no art. 9º. do CPM, que pressupõe ao menos uma destas três situações.
Tratava-se, na verdade, de funcionários públicos federais que estavam em serviço quando do cometimento dos fatos imputados, mas deslocados de sua função de militares e, portanto, não em atividade militar. A competência é, pois, da justiça comum federal.
A partir da premissa de incompetência absoluta da Justiça Militar, não há que se falar em coisa julgada em relação a quaisquer das decisões lá prolatadas, notadamente o arquivamento ocorrido.
Essa exata conclusão foi obtida no julgamento do conflito de competência nº 7657, julgado pelo STF, Rel Min. Eros Grau, conforme trechos que transcrevo:
“DECISÃO: O Ministério Público Federal manifesta-se nos seguintes termos (fls.
140/144):
“1. Trata-se de conflito positivo de competência suscitado pelo Tribunal Regional
Federal da 2ª Região em face do Juízo Federal da 6ª Vara Criminal do Rio de Janeiro/RJ
e do Superior Tribunal Militar que se declararam igualmente competentes para julgar os
delitos supostamente praticados por LINCOLN RODRIGUES LYRA GOMES e
outros co-réus, todos militares em atividade.
2. O Ministério Público Militar denunciou LINCOLN RODRIGUES LYRA
GOMES e outros 14 (quatorze) militares, todos da ativa, pela prática dos crimes de
corrupção de menores, injúria e lesão corporal, sendo rejeitada a denúncia com base na
incompetência da Justiça Militar para processar e julgar o feito, pois a conduta criminosa
configurava, em tese, crime de tortura, o qual não é previsto na legislação militar e por isso
sujeita-se à competência da Justiça federal comum. Houve recurso do Ministério Público
Militar, provido pelo STM para reconhecer a competência da Justiça Militar, mas ao final
concedeu-se habeas corpus de ofício aos denunciados para determinar o trancamento da ação
penal por falta de justa causa.
3. O Ministério Público Federal no Estado do Rio de Janeiro requisitou, então, a
instauração de inquérito policial, sobrevindo oferecimento da denúncia pela prática do crime
de tortura (art. 1º, II, § 4º, incisos I e II, da Lei nº 9.455/97), a qual recebida deu ensejo a
habeas corpus perante o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, visando o trancamento da
ação penal com base na ofensa à coisa julgada e incompetência da Justiça federal comum para
julgar a causa. A ordem foi denegada, tendo a Corte Regional suscitado conflito positivo de
jurisdição para o Superior Tribunal de Justiça (fls. 77/104). Contudo, no STJ foi
determinada a remessa dos autos ao Supremo Tribunal Federal, competente para julgar
conflito entre Tribunal Superior e Juiz federal de primeiro grau, conforme jurisprudência
assentada nesse STF sobre a questão.
4. A princípio, cumpre ressaltar que compete ao Supremo Tribunal Federal julgar
conflito negativo de competência entre Tribunal Superior e qualquer outro juízo. Isso porque
a solução de conflito de competência cabe necessariamente a Tribunal hierarquicamente
superior àquele que figure como parte (MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil
interpretada e legislação constitucional. SP: Atlas, 2003. Pg. 1407).
5. Nesse sentido a jurisprudência dessa Corte:
‘Conflito de Competência. Execução trabalhista e superveniente declaração de falência
da empresa executada. Competência deste Supremo Tribunal para julgar o conflito, à luz de
interpretação firmada do disposto no art. 102, I, o da CF. Com a manifestação expressa do
TST pela competência do Juízo suscitado, restou caracterizada a existência de conflito entre
uma Corte Superior e um Juízo de primeira instância, àquela não vinculado, sendo deste
Supremo Tribunal Federal a competência para julgá-lo.’ (CC 7.116, Rel. Min. Ellen
Gracie, DJ de 23.8.02)
6. De fato, o caso é da competência da Justiça federal comum, onde deverá ser
processado e julgado o feito.
7. inicialmente, no que se refere à alegação de ofensa à coisa julgada por haver decisão
do Superior Tribunal Militar sobre a questão, não há como acolhê-la.
8. Com efeito, a decisão proferida pelo STM, que supostamente estaria abrigada pelos
efeitos da coisa julgada, emana de Juízo absolutamente incompetente, na medida em que os
autos retratam a prática, em tese, de crime de tortura, o qual não encontra previsão na
legislação penal militar, deixando de atender o disposto no art. 9º, incisos I e II, 1ª parte, do
CPM. De forma que a declaração de nulidade absoluta, cognoscível a
qualquer tempo, jamais originou coisa julgada no feito transcorrido
perante o Juízo Militar, dada a sua condição de Juízo incompetente, e
portanto, desprovido de jurisdição.
9. Quanto ao crime praticado em si, suficiente a firmar a competência da Justiça
federal comum, as circunstâncias reveladas nos autos demonstram claramente a prática, em
tese, do crime de tortura, afastando por completo a hipótese de crime militar.
10. Consta dos autos que LINCOLN RODRIGUES LYRA GOMES e outros
14 (quatorze) denunciados, todos militares e no exercício das funções, abordaram três
menores que soltavam pipas em área militar restrita, de forma que sob o comando de
LINCOLN foram submetidos a intenso sofrimento físico e mental ao longo de várias horas,
consistentes em atos de crueldade perpetrados pelos denunciados. Confira-se da denúncia,
trecho que relata claramente a conduta dos denunciados, perfeitamente enquadrável, a
princípio, como crime de tortura:
‘(...)
Inicialmente, os ORA DENUNCIADOS colocaram os menores sob a mira de
armas e ordenaram que fossem andando até umas pedras, sendo ambos obrigados a andarem
de joelhos sobre as pedras, e quando colocavam as mãos no chão para se equilibrarem eram
covardemente agredidos pelos integrantes da patrulha. Após o ‘castigo’ inicial, tiveram os
olhos vendados e foram colocados no caminhão e levados para local ignorado.
No mesmo dia e horário o menor Alisson Freire de Oliveira, filho de Tereza Cristina
Freire de Oliveira encontra-se soltando pipa próximo ao Campo de Instrução de Gericinó,
tendo a pipa arrebentado a linha e caído dentro da unidade referida e o menor entrado para
pegar sua pipa; foi quando a mesma ‘patrulha do terror’ surgiu, tendo os ORA
DENUNCIADOS parado e cercado o indigitado menor. Um dos soldados rendeu e deu
um violento chute nas costas do mesmo, tendo sido ainda vendado e colocado dentro do
caminhão, onde percebeu por uma fenda que lá também estavam os outros dois menores,
Hugo Ramalho de Souza e Fábio dos Santos Leite. Nesse momento os três menores
começaram a ser agredidos e foram obrigados a ficarem só de camisetas e que lambessem a
bunda um do outro. Ato contínuo, os menores foram levados para um local não havia
ninguém que pudesse interferir nos atos dos militares.
Chegado ao local os menores foram obrigados a descer do caminhão e deitarem no
chão; logo após foram levados a um terreno baldio onde só havia matos e pedra, sendo que
naquele local o menor Alisson foi agredido três vezes com um fuzil nas costas. Não
satisfeitos, os ORA DENUNCIADOS sempre comandados pelo 1º DENUNCIADO
colocaram os três de joelhos nas pedras, mandaram que tirassem as sungas e fizessem sexo
oral um no outro. Os menores também foram pisoteados de botas e molhados com água
gelada para que sentissem frio, os soldados ainda pegaram uma faca e cortaram o cabelo do
menor Hugo, fizeram perguntas da tabuada e quando os menores erravam levavam uma
‘banda’.
Os menores ainda foram ameaçados de morte, foram obrigados a enfiar o dedo um no
ânus do outro, sendo que o menor Hugo se recusou a fazer o que os militares pediam, razão
pela qual os militares o levaram para um canto dizendo que iam matá-lo, que os outros
menores ouviram um tiro e escutaram os ORA DENUNCIADOS pedindo uma viatura
para buscar o corpo de Hugo e que faltavam apenas dois para serem mortos.
Os militares levaram os menores para o meio do mato onde foram obrigados a ficarem
de joelhos e cavarem o chão com as mãos, pois seriam mortos e enterrados nos buracos onde
estavam cavando e que deveriam fazer seus últimos pedidos. Logo após foram levados de volta
ao caminhão e depois liberados perto da Anchieta, não sem antes os ORA
DENUNCIADOS anotarem os telefones e endereços das vítimas, ameaçando-as de sérias
represálias caso contassem aos pais o ocorrido (...)’ (fls. 20/21).
11. Oportuno frisar que uma superficial análise do excerto transcrito, aliado aos
demais elementos carreados aos autos (depoimentos dos menores e dos denunciados, laudo de
lesões, dentre outros) é possível inferir que a justa causa para a ação penal evidente, sendo
totalmente prematuro e temeroso o estancamento da persecução criminal, sendo imprescindível
a continuidade das investigações para total aclaramento dos fatos.
12. Ante o exposto, o Ministério Público Federal manifesta-se pelo conhecimento do
conflito para que seja declarada a competência da Justiça Federal para processar e julgar o
feito.”
2. Os fatos narrados no referido trecho da denúncia enquadram-se, perfeitamente,
ao disposto no artigo 1º, inciso II da Lei n. 9.455/97, assim redigidos:
“Art. 1º. Constitui crime de tortura:
.....................................
II – submeter alguém sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência
ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal
ou medida de caráter preventivo.”
3. O crime de tortura não está tipificado no Código Penal Militar, resultando daí a
incompetência absoluta da autoridade jurisdicional militar para o julgamento da ação
penal. Não cabe, pois, falar em prevalência de decisão acobertada pela coisa julgada. Confira-se,
nesse sentido, as seguintes observações de Eugênio Pacelli de Oliveira (Curso de Processo
Penal, 6. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 228/229 e 643/644):
“... uma competência é absoluta quando ela não puder ser flexibilizada, é dizer,
quando estiver em risco a própria jurisdição como Poder Público, como constitucionalmente
responsável pela tutela da questão penal. Aqui o interesse é eminentemente público,
indisponível e inafastável por qualquer decisão dos interessados que concretamente estejam
integrando determinada relação processual, sejam eles partes (acusado, Ministério Público,
assistentes de acusação), seja o próprio órgão julgador. Trata-se, pois de interesse
metaprocessual, aqui identificado como aquele que ultrapassa a fronteira do interesse dos
envolvidos em determinado e específico processo, já passado, em curso ou, ainda,
potencialmente existente.
(...)
Com efeito, enquanto a nulidade relativa diz respeito ao interesse das partes em
determinado e específico processo penal (...) os vícios processuais que resultam em nulidade
absoluta referem-se ao processo penal enquanto função jurisdicional, afetando não só o
interesse de algum litigante, mas de todo e qualquer (presente, passado e futuro) acusado, em
todo e qualquer processo. O que se põe em risco com a violação das formas em tais situações é
a própria função judicante, com reflexos irreparáveis na qualidade da jurisdição prestada.
(...). Como acontece em relação a qualquer outra modalidade de risco à liberdade individual,
a nulidade absoluta poderá ser reconhecida e declarada até de plano, como é o caso de
incompetência absoluta em razão da matéria ou da função exercida pelo acusado. Assim,
diante da qualidade do interesse em disputa, as nulidades absolutas poderão ser reconhecidas
ex officio e a qualquer tempo, ainda que já presente, como tivemos a oportunidade de
salientar, o trânsito em julgado da sentença.”
Conheço do conflito de competência, na linha do parecer ministerial, e declaro a
competência da Justiça Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro para o julgamento do
feito criminal.
Publique-se.
Brasília, 3 de agosto de 2009.
Ministro Eros Grau
- Relator –“
Em sendo assim, a justiça comum federal é competente para julgamento
dos fatos, inexistindo coisa julgada em relação a eles, decorrente do arquivamento ocorrido
na justiça castrense.
3. DA PRESCRIÇÃO
Os fatos narrados na denúncia ocorreram em 30 de abril de 1981: há exatos 33 anos, portanto. Tenho, porém, que a prescrição não ocorreu. Para tanto, parto de duas premissas importantes: (i) os crimes de tortura, homicídio e desaparecimento de pessoas, cometidos por agentes do Estado, como forma de perseguição política, no período da ditadura militar brasileira configuram crimes contra a humanidade; (ii) segundo princípio geral de direito internacional, acolhido como costume pela prática dos Estados e
posteriormente por Resoluções da ONU, os crimes contra a humanidade são imprescritíveis.
Passo às razões da primeira premissa.
O conceito de crime contra a humanidade foi previsto inicialmente no art. 6º. do Estatuto do Tribunal de Nuremberg, e depois ratificado pela Organização das Nações Unidas em dezembro de 1946. Nele estão previstas as condutas de homicídio, deportação, extermínio e outros atos desumanos cometidos “ dentro de um padrão amplo e repetitivo de perseguição a determinado grupo (ou grupos) da sociedade civil, por
qualquer razão ( política, religiosa, racial ou étnica). Como fixado pelas Nações Unidas – ao aprovar os princípios ditados pelo Tribunal de Nuremberg-, o crime de lesa-humanidade é qualquer ato desumano cometido contra a população civil, no bojo de uma perseguição por motivos políticos, raciais ou religiosos. Note-se que não há necessidade de consumação de um genocídio, mas apenas que determinado segmento social seja alvo de repressão específica.” [Nota de rodsapé 1: Weichert, Marlon Alberto, in Crimes contra a Humanidade perpetrados no Brasil. Lei de Anistia e Prescrição Penal, pág.174. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol.74. Ed. RT.]
A isto acrescente-se que estas práticas devem ser parte de uma política de governo ou de uma prática sistemática e freqüente de atrocidades que são toleradas, perdoadas ou incentivadas por um governante ou pela autoridade de fato. [Nota de rodapé 2: Op. cit., pág. 177.]
Passados 50 anos do golpe militar de 1964, já não se ignora mais que a prática de tortura e homicídios contra dissidentes políticos naquele período fazia parte de uma política de Estado, conhecida, desejada e coordenada pela mais alta cúpula governamental.
Os fatos narrados na denúncia encontram-se, em tese, dentro deste contexto, na medida em que, segundo a tese ministerial, a ser submetida ao contraditório, o atentado a bomba descrito fazia parte de uma série de outros quarenta atentados a bomba semelhantes ocorridos no período de um ano e meio, direcionados à população civil, com o objetivo de retardar a reabertura política que naquele momento já se desenhava. Não por acaso teriam sido escolhidas as festividades do dia 1º de maio, no Riocentro, tidas como
símbolo dos movimentos contrários à ditadura. Também a referendar essa idéia está a suposta tentativa de atribuir o atentado a movimentos de esquerda, narrada na inicial acusatória.
Em suma, trata-se, ao que tudo indica, de um episódio que deve ser contextualizado, ao menos nesta fase inicial, como parte de uma série de crimes imputados a agentes do Estado no período da ditadura militar brasileira, com o objetivo de atacar a população civil e perseguir dissidentes políticos.
Admitida a tese de que se está diante de um crime contra a humanidade, deve-se reconhecer, também, a imprescritibilidade destes fatos. Vejamos. Muito embora o Brasil não tenha ratificado a Convenção sobre
Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 1968 - pois estava no auge da ditadura militar nesta época -, entende a doutrina estarmos diante, na verdade, de verdadeiro princípio geral de direito internacional, incorporado aos costumes internacionais.
Inicialmente, parece importante deixar claro o papel dos costumes internacionais como fonte do Direito Internacional. Valho-me, aqui, das lições de MALCOM SHAW:
“As “fontes” são os dispositivos que operam dentro do sistema jurídico num nível técnico;
excluem-se assim as fontes últimas ou mediatas, como a razão ou a moral, bem como as
fontes secundárias e funcionais, como as bibliotecas e revistas jurídicas. O que pretendemos
fazer é descrever o processo pelo qual as normas do direito internacional efetivamente
surgem. [Nota de rodapé 3: Ver também, p.ex., M. S. McDougal e W. M. Reisman, “The Prescribing Function: How International Law is Made”, 6 Yale Studies in World Public Order, 1980, p. 249.]
O artigo 38(1) do Estatuto da Corte Internacional de Justiça é amplamente reconhecido
como a formulação mais autorizada a respeito das fontes do direito internacional [Nota de rodapé 4: Ver, p. ex., Brownlie, Principles, p. 3; Oppenheim’s International Law, p. 24; e M. O Hudson, The
Permanent Court of International Justice, Nova York, 1934, pp. 601 ss.]. Diz ele:
A Corte, cuja função é decidir em conformidade com o direito internacional as
controvérsias que lhe forem submetidas, aplicará:
(a) As convenções internacionais, quer gerais, quer especiais, que estabeleçam normas
expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes; (b) o costume internacional, como
prova de uma prática geral aceita como direito; (c) os princípios gerais do direito,
reconhecidos pelas nações civilizadas; (d) com a ressalva das disposições do artigo 59,
as decisões judiciais e a doutrina dos publicistas mais qualificados das diferentes
nações, como meio auxiliar para a determinação das normas de direito.
Embora tal formulação, tecnicamente, trate apenas das fontes de direito internacional que
podem ser aplicadas pela Corte Internacional, a verdade é que, uma vez que a função da
Corte é decidir “em conformidade com o direito internacional” as controvérsias que lhe
forem submetidas, e uma vez que todos os Estados-membros da ONU são ipso facto
signatários do Estatuto em virtude do artigo 93 da Carta das Nações Unidas (os
Estados que não são membros da ONU podem aceitar especificamente o Estatuto da
Corte: a Suíça era o exemplo mais conhecido antes de filiar-se à ONU, em 2002),
ninguém duvida de que esse dispositivo expressa a opinião geral acerca da enumeração das
fontes do direito internacional.”
(SHAW, Malcolm N. Direito Internacional. Tradução de Marcelo Brandão
Cipolla, Lenita Ananias do Nascimento, Antônio de Oliveira Sette-Câmara.
São Paulo: Martins Fontes, 2010. p.56)
E, mais adiante, sobre a específica importância dos costumes no direito
internacional:
“Dentro dos sistemas jurídicos contemporâneos, particularmente nos países desenvolvidos,
o costume é relativamente pouco ágil e sem importância; com frequência, seu valor é
puramente nostálgico [Nota de rodapé 5: Ver, p. ex., Dias, Jurisprudence.] No direito internacional, por outro lado, o costume é uma fonte dinâmica do direito. Isso se deve à natureza do sistema internacional, ao qual faltam órgãos centralizados de governo”
(SHAW, Malcolm N. Direito Internacional. Tradução de Marcelo Brandão
Cipolla, Lenita Ananias do Nascimento, Antônio de Oliveira Sette-Câmara.
São Paulo: Martins Fontes, 2010. p.58)
Em sede de direito internacional, podem se “detectar dois elementos básicos na constituição de um costume. O primeiro são os fatos materiais, ou seja, o comportamento propriamente dito dos Estados; o segundo é a crença psicológica ou subjetiva de que tal comportamento é “segundo a lei”. Como observou a Corte
Internacional no caso Líbia/Malta, a substância do direito costumeiro deve ser “procurada em primeiro lugar na prática efetiva e na opinio juris dos Estados” [Nota de rodapé 6: ICJ Reports, 1985, PP.13, 29; 81 ILR, p. 239. Ver também o Parecer Consultivo sobre a Legalidade da ameaça ou uso de armas nucleares, ICJ Reports, 1996, pp. 226, 253; 110 ILR, p. 163 . In SHAW, Malcolm N. Direito Internacional. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla, Lenita Ananias do Nascimento, Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p.59.]
Passemos, pois, aos argumentos que permitem afirmar que a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade é um princípio geral de direito internacional amplamente aceito pelos Estados e, portanto, incorporado aos costumes internacionais.
Na Resolução da ONU nº 95, de 1946, a Assembleia Geral acolheu integralmente os princípios de direito internacional reconhecidos pelo Estatuto do Tribunal de Nuremberg e as sentenças do referido Tribunal. Relembre-se que aquele Tribunal havia procedido à definição de crimes contra a humanidade, bem como reconhecido a sua imprescritibilidade.
Posteriormente, a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade foi expressamente tratada na Resolução da ONU nº 3074, de 3 de dezembro de 1973, nos seguintes termos:
“1. Os crimes de guerra e os crimes de lesa-humanidade, onde for ou
qualquer que seja a data em que tenham sido cometidos, serão objeto de
uma investigação, e as pessoas contra as que existam provas de
culpabilidade na execução de tais crimes serão procuradas, detidas,
processadas e, em caso de serem consideradas culpadas, castigadas.
(...)
8. Os Estados não adotarão disposições legislativas nem tomarão medidas
de outra espécie que possam menosprezar as obrigações internacionais que
tenham acordado no tocante à identificação, à prisão, à extradição e ao
castigo dos culpáveis de crimes de guerra ou de crimes contra a
humanidade” [ Nota de rodapé 7: Tradução livre do texto. Disponível em:
HTTP://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/285/99/IMG/NR028599.pdf?OpenElement
Acesso em 25.09.2007. (Trecho extraído da bibliografia: WEICHERT, Marlon Alberto. “lei de anistia e
prescrição penal”. Revista Brasileira de Ciências Criminais 74. Editora Revista dos Tribunais, Setembrooutubro 2008. p. 200. // Nota de rodapé 8: Texto original: “1. War crimes and crimes against humanity, wherever they are committed, shall be subject to investigation and the persons against whom there is evidence that they have committed such crimes shall be subject to tracing, arrest, trial and, if found guilty, to punishment. (…) 8. States shall not take any legislative or other measures which may be prejudicial to the international obligations they have assumed in regard to the detection, arrest, extradition and punishment of persons guilty of war crimes and crimes against humanity.”, obtido do site das Nações Unidas, disponível em: http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/3074%28XXVIII%29&Lang=E&Area=RESOLUTION]
A força deste princípio, absorvido como verdadeiro costume internacional, permitiu fosse inserido em novos instrumentos internacionais, sendo de destacar-se sua previsão no Estatuto de Roma, que trata do Tribunal Penal Internacional.
O reconhecimento da imprescritibilidade de crimes de lesa-humanidade como um princípio geral de direito internacional, incorporado aos costumes internacionais, foi explicitamente realizado pela Corte Interamericana de Direitos, no “Caso Almonacid Arellano”:
"El Estado no podrá argüir ninguna ley ni disposición de derecho interno
para eximirse de la orden de la Corte de investigar y sancionar penalmente a
los responsables de la muerte del Sr. Almonacid Arellano. Chile no podrá
volver a aplicar el Decreto Ley n. 2.191, por todas las consideraciones dadas
en la presente Sentencia, puesto que el Estado está en la obligación de dejar
sin efecto el citado Decreto Ley (supra, párr. 144).
Pero además, el Estado no podrá argumentar prescripción, irretroactividad
de la ley penal, ni el principio non bis in idem, así como cualquier
excluyente similar de responsabilidad, para excusarse de su deber de
investigar y sancionar a los responsables" (párr. 150).”
(Voto razonado del Juez A.A. Cançado Trindade)
Não bastasse a natureza de costume internacional conferida à imprescritibilidade destes crimes, considero estarmos diante de verdadeiro ius cogens, que não pode ser ignorado pelos Estados .
Valho-me aqui, ainda uma vez, dos ensinamentos de SHAW:
“No caso Barcelona Traction, a Corte Internacional declarou que existe uma diferença
essencial entre as obrigações de um Estado perante a comunidade internacional como um
todo e as obrigações que o vinculam a outro Estado no campo específico da proteção
diplomática. Por sua própria natureza, as primeiras dizem respeito a todos os Estados, e
“pode-se considerar que todos os Estados têm um interesse legal em que elas sejam
protegidas; são obrigações erga omnes”. Como exemplos de obrigações desse tipo, foram
mencionadas a proibição da agressão e do genocídio e a proteção contra a escravização e a
discriminação racial. A elas poderíamos acrescentar a proibição da tortura. Além disso,
no caso Timor Leste, a Corte Internacional insistiu em que o direito dos povos à
autodeterminação “tem caráter erga omnes”, do mesmo modo, no caso Genocídio na
Bósnia (objeções processuais), reiterou que “os direitos e obrigações consagrados na
Convenção são direitos e obrigações erga omnes.
(...)
O artigo 53 da Convenção sobre o Direito dos Tratados, de 1969, prevê que um tratado
será nulo se, “no momento de sua conclusão, conflitar com uma norma imperativa do
direito internacional geral”. Esse princípio (jus cogens) também aplicar-se-ia no contexto
do direito consuetudinário, de tal modo que não seria permitida a derrogação dessas
normas pelo costume local ou especial.”
(SHAW, Malcolm N. Direito Internacional. Tradução de Marcelo Brandão
Cipolla, Lenita Ananias do Nascimento, Antônio de Oliveira Sette-Câmara.
São Paulo: Martins Fontes, 2010. p.97-98)
Trata-se, pois, a imprescritibilidade, de verdadeiro ius cogens, a ser respeitado pelos Estados.
Acrescento, ainda, que o Brasil, já em 1914 ratificou a Convenção Concernente às Leis e Usos da Guerra Terrestre, firmada em Haia em 1907, na qual reconhece “ o caráter normativo dos princípios jus gentium preconizados pelos usos estabelecidos entre as nações civilizadas, pelas leis da humanidade e pelas exigências da consciência pública” [Nota de rodapé 9: Weichert, pág. 203.] Desde o início do sec. XX, pois, reconhece a força normativa destes princípios.
Finalmente, é necessário deixar consignado que a força deste costume internacional remonta às decisões do Tribunal de Nuremberg, portanto em muito anteriores aos fatos ora em julgamento.
Por todo o exposto, e presente o suporte probatório mínimo configurador da justa causa, RECEBO A DENÚNCIA.
Defiro os requerimentos formulados na “b” de fls. 141, sendo certo que a letra “a” foi, ao que tudo indica, já cumprida pelo STM.
Citem-se os acusados para apresentação de resposta à acusação, nos termos do art. 406 do CPP.
À SEDRJ para as devidas anotações.
Rio de Janeiro, 13 de maio de 2014.
(Assinado eletronicamente, conforme Lei nº 11.419/2006)
ANA PAULA VIEIRA DE CARVALHO
Juiz (a) Federal Titular
Fonte: Blog da Janice
imagem de http://www.dhnet.org.br/
Em excelente decisão da Juíza Federal Ana Paula Vieira de Carvalho, a denúncia foi recebida, dando início à ação penal contra os militares, que responderão pelos crimes de tentativa de homicídio doloso, associação em organização criminosa, transporte de explosivos, favorecimento pessoal e fraude processual.
Por se tratar de crimes contra a humanidade, segundo princípio geral de direito internacional e resoluções da ONU - Organização das Nações Unidas, considerou-se não ter ocorrido a prescrição, que é o prazo determinado que o Estado tem para processar uma pessoa. Conforme o crime, esse prazo varia de 3 anos (crimes leves, com pena máxima de 1 ano de detenção) até 20 anos (para os crimes mais graves, com pena máxima superior a 12 anos, como o homicídio).
A decisão segue abaixo transcrita. A sentença foi assinada eletronicamente e a autenticidade pode ser conferida (Certificação digital pertencente a ANA PAULA VIEIRA DE CARVALHO.
Documento No: 69639410-1-0-1-10-780340 - consulta à autenticidade do documento através do site www.jfrj.jus.br/autenticidade)
É um marco histórico. É o Ministério Público Federal defendendo os direitos humanos e a sociedade.
------------------------------
Processo nº 0017766-09.2014.4.02.5101 (2014.51.01.017766-5)
Vistos, etc.
1. Trata-se de denúncia oferecida pelo MPF em desfavor de WILSON LUIZ
CHAVES MACHADO, CLAUDIO ANTONIO GUERRA, NILTON DE
ALBUQUERQUE CERQUEIRA, NEWTON ARAUJO DE OLIVEIRA E CRUZ,
EDSON SA ROCHA e DIVANY CARVALHO BARROS, imputando-lhes os crimes de tentativa de homicídio doloso, associação em organização criminosa, transporte de explosivos, favorecimento pessoal e fraude processual, em razão de participação no episódio conhecido como o atentado a bomba no Riocentro.
Algumas questões jurídicas, entretanto, precisam ser enfrentadas antes de se analisar a existência de suporte probatório mínimo para recebimento da exordial. Passo, pois, ao seu exame sucinto.
2. COMPETÊNCIA E COISA JULGADA
Inicialmente, tenho por competente a justiça comum federal para julgamento dos fatos.
Deveras, os militares supostamente envolvidos não estavam no exercício de atividade militar, em serviço militar ou atuando em razão da função militar. Daí porque não se aplica aos fatos o conceito de crime militar previsto no art. 9º. do CPM, que pressupõe ao menos uma destas três situações.
Tratava-se, na verdade, de funcionários públicos federais que estavam em serviço quando do cometimento dos fatos imputados, mas deslocados de sua função de militares e, portanto, não em atividade militar. A competência é, pois, da justiça comum federal.
A partir da premissa de incompetência absoluta da Justiça Militar, não há que se falar em coisa julgada em relação a quaisquer das decisões lá prolatadas, notadamente o arquivamento ocorrido.
Essa exata conclusão foi obtida no julgamento do conflito de competência nº 7657, julgado pelo STF, Rel Min. Eros Grau, conforme trechos que transcrevo:
“DECISÃO: O Ministério Público Federal manifesta-se nos seguintes termos (fls.
140/144):
“1. Trata-se de conflito positivo de competência suscitado pelo Tribunal Regional
Federal da 2ª Região em face do Juízo Federal da 6ª Vara Criminal do Rio de Janeiro/RJ
e do Superior Tribunal Militar que se declararam igualmente competentes para julgar os
delitos supostamente praticados por LINCOLN RODRIGUES LYRA GOMES e
outros co-réus, todos militares em atividade.
2. O Ministério Público Militar denunciou LINCOLN RODRIGUES LYRA
GOMES e outros 14 (quatorze) militares, todos da ativa, pela prática dos crimes de
corrupção de menores, injúria e lesão corporal, sendo rejeitada a denúncia com base na
incompetência da Justiça Militar para processar e julgar o feito, pois a conduta criminosa
configurava, em tese, crime de tortura, o qual não é previsto na legislação militar e por isso
sujeita-se à competência da Justiça federal comum. Houve recurso do Ministério Público
Militar, provido pelo STM para reconhecer a competência da Justiça Militar, mas ao final
concedeu-se habeas corpus de ofício aos denunciados para determinar o trancamento da ação
penal por falta de justa causa.
3. O Ministério Público Federal no Estado do Rio de Janeiro requisitou, então, a
instauração de inquérito policial, sobrevindo oferecimento da denúncia pela prática do crime
de tortura (art. 1º, II, § 4º, incisos I e II, da Lei nº 9.455/97), a qual recebida deu ensejo a
habeas corpus perante o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, visando o trancamento da
ação penal com base na ofensa à coisa julgada e incompetência da Justiça federal comum para
julgar a causa. A ordem foi denegada, tendo a Corte Regional suscitado conflito positivo de
jurisdição para o Superior Tribunal de Justiça (fls. 77/104). Contudo, no STJ foi
determinada a remessa dos autos ao Supremo Tribunal Federal, competente para julgar
conflito entre Tribunal Superior e Juiz federal de primeiro grau, conforme jurisprudência
assentada nesse STF sobre a questão.
4. A princípio, cumpre ressaltar que compete ao Supremo Tribunal Federal julgar
conflito negativo de competência entre Tribunal Superior e qualquer outro juízo. Isso porque
a solução de conflito de competência cabe necessariamente a Tribunal hierarquicamente
superior àquele que figure como parte (MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil
interpretada e legislação constitucional. SP: Atlas, 2003. Pg. 1407).
5. Nesse sentido a jurisprudência dessa Corte:
‘Conflito de Competência. Execução trabalhista e superveniente declaração de falência
da empresa executada. Competência deste Supremo Tribunal para julgar o conflito, à luz de
interpretação firmada do disposto no art. 102, I, o da CF. Com a manifestação expressa do
TST pela competência do Juízo suscitado, restou caracterizada a existência de conflito entre
uma Corte Superior e um Juízo de primeira instância, àquela não vinculado, sendo deste
Supremo Tribunal Federal a competência para julgá-lo.’ (CC 7.116, Rel. Min. Ellen
Gracie, DJ de 23.8.02)
6. De fato, o caso é da competência da Justiça federal comum, onde deverá ser
processado e julgado o feito.
7. inicialmente, no que se refere à alegação de ofensa à coisa julgada por haver decisão
do Superior Tribunal Militar sobre a questão, não há como acolhê-la.
8. Com efeito, a decisão proferida pelo STM, que supostamente estaria abrigada pelos
efeitos da coisa julgada, emana de Juízo absolutamente incompetente, na medida em que os
autos retratam a prática, em tese, de crime de tortura, o qual não encontra previsão na
legislação penal militar, deixando de atender o disposto no art. 9º, incisos I e II, 1ª parte, do
CPM. De forma que a declaração de nulidade absoluta, cognoscível a
qualquer tempo, jamais originou coisa julgada no feito transcorrido
perante o Juízo Militar, dada a sua condição de Juízo incompetente, e
portanto, desprovido de jurisdição.
9. Quanto ao crime praticado em si, suficiente a firmar a competência da Justiça
federal comum, as circunstâncias reveladas nos autos demonstram claramente a prática, em
tese, do crime de tortura, afastando por completo a hipótese de crime militar.
10. Consta dos autos que LINCOLN RODRIGUES LYRA GOMES e outros
14 (quatorze) denunciados, todos militares e no exercício das funções, abordaram três
menores que soltavam pipas em área militar restrita, de forma que sob o comando de
LINCOLN foram submetidos a intenso sofrimento físico e mental ao longo de várias horas,
consistentes em atos de crueldade perpetrados pelos denunciados. Confira-se da denúncia,
trecho que relata claramente a conduta dos denunciados, perfeitamente enquadrável, a
princípio, como crime de tortura:
‘(...)
Inicialmente, os ORA DENUNCIADOS colocaram os menores sob a mira de
armas e ordenaram que fossem andando até umas pedras, sendo ambos obrigados a andarem
de joelhos sobre as pedras, e quando colocavam as mãos no chão para se equilibrarem eram
covardemente agredidos pelos integrantes da patrulha. Após o ‘castigo’ inicial, tiveram os
olhos vendados e foram colocados no caminhão e levados para local ignorado.
No mesmo dia e horário o menor Alisson Freire de Oliveira, filho de Tereza Cristina
Freire de Oliveira encontra-se soltando pipa próximo ao Campo de Instrução de Gericinó,
tendo a pipa arrebentado a linha e caído dentro da unidade referida e o menor entrado para
pegar sua pipa; foi quando a mesma ‘patrulha do terror’ surgiu, tendo os ORA
DENUNCIADOS parado e cercado o indigitado menor. Um dos soldados rendeu e deu
um violento chute nas costas do mesmo, tendo sido ainda vendado e colocado dentro do
caminhão, onde percebeu por uma fenda que lá também estavam os outros dois menores,
Hugo Ramalho de Souza e Fábio dos Santos Leite. Nesse momento os três menores
começaram a ser agredidos e foram obrigados a ficarem só de camisetas e que lambessem a
bunda um do outro. Ato contínuo, os menores foram levados para um local não havia
ninguém que pudesse interferir nos atos dos militares.
Chegado ao local os menores foram obrigados a descer do caminhão e deitarem no
chão; logo após foram levados a um terreno baldio onde só havia matos e pedra, sendo que
naquele local o menor Alisson foi agredido três vezes com um fuzil nas costas. Não
satisfeitos, os ORA DENUNCIADOS sempre comandados pelo 1º DENUNCIADO
colocaram os três de joelhos nas pedras, mandaram que tirassem as sungas e fizessem sexo
oral um no outro. Os menores também foram pisoteados de botas e molhados com água
gelada para que sentissem frio, os soldados ainda pegaram uma faca e cortaram o cabelo do
menor Hugo, fizeram perguntas da tabuada e quando os menores erravam levavam uma
‘banda’.
Os menores ainda foram ameaçados de morte, foram obrigados a enfiar o dedo um no
ânus do outro, sendo que o menor Hugo se recusou a fazer o que os militares pediam, razão
pela qual os militares o levaram para um canto dizendo que iam matá-lo, que os outros
menores ouviram um tiro e escutaram os ORA DENUNCIADOS pedindo uma viatura
para buscar o corpo de Hugo e que faltavam apenas dois para serem mortos.
Os militares levaram os menores para o meio do mato onde foram obrigados a ficarem
de joelhos e cavarem o chão com as mãos, pois seriam mortos e enterrados nos buracos onde
estavam cavando e que deveriam fazer seus últimos pedidos. Logo após foram levados de volta
ao caminhão e depois liberados perto da Anchieta, não sem antes os ORA
DENUNCIADOS anotarem os telefones e endereços das vítimas, ameaçando-as de sérias
represálias caso contassem aos pais o ocorrido (...)’ (fls. 20/21).
11. Oportuno frisar que uma superficial análise do excerto transcrito, aliado aos
demais elementos carreados aos autos (depoimentos dos menores e dos denunciados, laudo de
lesões, dentre outros) é possível inferir que a justa causa para a ação penal evidente, sendo
totalmente prematuro e temeroso o estancamento da persecução criminal, sendo imprescindível
a continuidade das investigações para total aclaramento dos fatos.
12. Ante o exposto, o Ministério Público Federal manifesta-se pelo conhecimento do
conflito para que seja declarada a competência da Justiça Federal para processar e julgar o
feito.”
2. Os fatos narrados no referido trecho da denúncia enquadram-se, perfeitamente,
ao disposto no artigo 1º, inciso II da Lei n. 9.455/97, assim redigidos:
“Art. 1º. Constitui crime de tortura:
.....................................
II – submeter alguém sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência
ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal
ou medida de caráter preventivo.”
3. O crime de tortura não está tipificado no Código Penal Militar, resultando daí a
incompetência absoluta da autoridade jurisdicional militar para o julgamento da ação
penal. Não cabe, pois, falar em prevalência de decisão acobertada pela coisa julgada. Confira-se,
nesse sentido, as seguintes observações de Eugênio Pacelli de Oliveira (Curso de Processo
Penal, 6. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 228/229 e 643/644):
“... uma competência é absoluta quando ela não puder ser flexibilizada, é dizer,
quando estiver em risco a própria jurisdição como Poder Público, como constitucionalmente
responsável pela tutela da questão penal. Aqui o interesse é eminentemente público,
indisponível e inafastável por qualquer decisão dos interessados que concretamente estejam
integrando determinada relação processual, sejam eles partes (acusado, Ministério Público,
assistentes de acusação), seja o próprio órgão julgador. Trata-se, pois de interesse
metaprocessual, aqui identificado como aquele que ultrapassa a fronteira do interesse dos
envolvidos em determinado e específico processo, já passado, em curso ou, ainda,
potencialmente existente.
(...)
Com efeito, enquanto a nulidade relativa diz respeito ao interesse das partes em
determinado e específico processo penal (...) os vícios processuais que resultam em nulidade
absoluta referem-se ao processo penal enquanto função jurisdicional, afetando não só o
interesse de algum litigante, mas de todo e qualquer (presente, passado e futuro) acusado, em
todo e qualquer processo. O que se põe em risco com a violação das formas em tais situações é
a própria função judicante, com reflexos irreparáveis na qualidade da jurisdição prestada.
(...). Como acontece em relação a qualquer outra modalidade de risco à liberdade individual,
a nulidade absoluta poderá ser reconhecida e declarada até de plano, como é o caso de
incompetência absoluta em razão da matéria ou da função exercida pelo acusado. Assim,
diante da qualidade do interesse em disputa, as nulidades absolutas poderão ser reconhecidas
ex officio e a qualquer tempo, ainda que já presente, como tivemos a oportunidade de
salientar, o trânsito em julgado da sentença.”
Conheço do conflito de competência, na linha do parecer ministerial, e declaro a
competência da Justiça Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro para o julgamento do
feito criminal.
Publique-se.
Brasília, 3 de agosto de 2009.
Ministro Eros Grau
- Relator –“
Em sendo assim, a justiça comum federal é competente para julgamento
dos fatos, inexistindo coisa julgada em relação a eles, decorrente do arquivamento ocorrido
na justiça castrense.
3. DA PRESCRIÇÃO
Os fatos narrados na denúncia ocorreram em 30 de abril de 1981: há exatos 33 anos, portanto. Tenho, porém, que a prescrição não ocorreu. Para tanto, parto de duas premissas importantes: (i) os crimes de tortura, homicídio e desaparecimento de pessoas, cometidos por agentes do Estado, como forma de perseguição política, no período da ditadura militar brasileira configuram crimes contra a humanidade; (ii) segundo princípio geral de direito internacional, acolhido como costume pela prática dos Estados e
posteriormente por Resoluções da ONU, os crimes contra a humanidade são imprescritíveis.
Passo às razões da primeira premissa.
O conceito de crime contra a humanidade foi previsto inicialmente no art. 6º. do Estatuto do Tribunal de Nuremberg, e depois ratificado pela Organização das Nações Unidas em dezembro de 1946. Nele estão previstas as condutas de homicídio, deportação, extermínio e outros atos desumanos cometidos “ dentro de um padrão amplo e repetitivo de perseguição a determinado grupo (ou grupos) da sociedade civil, por
qualquer razão ( política, religiosa, racial ou étnica). Como fixado pelas Nações Unidas – ao aprovar os princípios ditados pelo Tribunal de Nuremberg-, o crime de lesa-humanidade é qualquer ato desumano cometido contra a população civil, no bojo de uma perseguição por motivos políticos, raciais ou religiosos. Note-se que não há necessidade de consumação de um genocídio, mas apenas que determinado segmento social seja alvo de repressão específica.” [Nota de rodsapé 1: Weichert, Marlon Alberto, in Crimes contra a Humanidade perpetrados no Brasil. Lei de Anistia e Prescrição Penal, pág.174. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol.74. Ed. RT.]
A isto acrescente-se que estas práticas devem ser parte de uma política de governo ou de uma prática sistemática e freqüente de atrocidades que são toleradas, perdoadas ou incentivadas por um governante ou pela autoridade de fato. [Nota de rodapé 2: Op. cit., pág. 177.]
Passados 50 anos do golpe militar de 1964, já não se ignora mais que a prática de tortura e homicídios contra dissidentes políticos naquele período fazia parte de uma política de Estado, conhecida, desejada e coordenada pela mais alta cúpula governamental.
Os fatos narrados na denúncia encontram-se, em tese, dentro deste contexto, na medida em que, segundo a tese ministerial, a ser submetida ao contraditório, o atentado a bomba descrito fazia parte de uma série de outros quarenta atentados a bomba semelhantes ocorridos no período de um ano e meio, direcionados à população civil, com o objetivo de retardar a reabertura política que naquele momento já se desenhava. Não por acaso teriam sido escolhidas as festividades do dia 1º de maio, no Riocentro, tidas como
símbolo dos movimentos contrários à ditadura. Também a referendar essa idéia está a suposta tentativa de atribuir o atentado a movimentos de esquerda, narrada na inicial acusatória.
Em suma, trata-se, ao que tudo indica, de um episódio que deve ser contextualizado, ao menos nesta fase inicial, como parte de uma série de crimes imputados a agentes do Estado no período da ditadura militar brasileira, com o objetivo de atacar a população civil e perseguir dissidentes políticos.
Admitida a tese de que se está diante de um crime contra a humanidade, deve-se reconhecer, também, a imprescritibilidade destes fatos. Vejamos. Muito embora o Brasil não tenha ratificado a Convenção sobre
Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 1968 - pois estava no auge da ditadura militar nesta época -, entende a doutrina estarmos diante, na verdade, de verdadeiro princípio geral de direito internacional, incorporado aos costumes internacionais.
Inicialmente, parece importante deixar claro o papel dos costumes internacionais como fonte do Direito Internacional. Valho-me, aqui, das lições de MALCOM SHAW:
“As “fontes” são os dispositivos que operam dentro do sistema jurídico num nível técnico;
excluem-se assim as fontes últimas ou mediatas, como a razão ou a moral, bem como as
fontes secundárias e funcionais, como as bibliotecas e revistas jurídicas. O que pretendemos
fazer é descrever o processo pelo qual as normas do direito internacional efetivamente
surgem. [Nota de rodapé 3: Ver também, p.ex., M. S. McDougal e W. M. Reisman, “The Prescribing Function: How International Law is Made”, 6 Yale Studies in World Public Order, 1980, p. 249.]
O artigo 38(1) do Estatuto da Corte Internacional de Justiça é amplamente reconhecido
como a formulação mais autorizada a respeito das fontes do direito internacional [Nota de rodapé 4: Ver, p. ex., Brownlie, Principles, p. 3; Oppenheim’s International Law, p. 24; e M. O Hudson, The
Permanent Court of International Justice, Nova York, 1934, pp. 601 ss.]. Diz ele:
A Corte, cuja função é decidir em conformidade com o direito internacional as
controvérsias que lhe forem submetidas, aplicará:
(a) As convenções internacionais, quer gerais, quer especiais, que estabeleçam normas
expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes; (b) o costume internacional, como
prova de uma prática geral aceita como direito; (c) os princípios gerais do direito,
reconhecidos pelas nações civilizadas; (d) com a ressalva das disposições do artigo 59,
as decisões judiciais e a doutrina dos publicistas mais qualificados das diferentes
nações, como meio auxiliar para a determinação das normas de direito.
Embora tal formulação, tecnicamente, trate apenas das fontes de direito internacional que
podem ser aplicadas pela Corte Internacional, a verdade é que, uma vez que a função da
Corte é decidir “em conformidade com o direito internacional” as controvérsias que lhe
forem submetidas, e uma vez que todos os Estados-membros da ONU são ipso facto
signatários do Estatuto em virtude do artigo 93 da Carta das Nações Unidas (os
Estados que não são membros da ONU podem aceitar especificamente o Estatuto da
Corte: a Suíça era o exemplo mais conhecido antes de filiar-se à ONU, em 2002),
ninguém duvida de que esse dispositivo expressa a opinião geral acerca da enumeração das
fontes do direito internacional.”
(SHAW, Malcolm N. Direito Internacional. Tradução de Marcelo Brandão
Cipolla, Lenita Ananias do Nascimento, Antônio de Oliveira Sette-Câmara.
São Paulo: Martins Fontes, 2010. p.56)
E, mais adiante, sobre a específica importância dos costumes no direito
internacional:
“Dentro dos sistemas jurídicos contemporâneos, particularmente nos países desenvolvidos,
o costume é relativamente pouco ágil e sem importância; com frequência, seu valor é
puramente nostálgico [Nota de rodapé 5: Ver, p. ex., Dias, Jurisprudence.] No direito internacional, por outro lado, o costume é uma fonte dinâmica do direito. Isso se deve à natureza do sistema internacional, ao qual faltam órgãos centralizados de governo”
(SHAW, Malcolm N. Direito Internacional. Tradução de Marcelo Brandão
Cipolla, Lenita Ananias do Nascimento, Antônio de Oliveira Sette-Câmara.
São Paulo: Martins Fontes, 2010. p.58)
Em sede de direito internacional, podem se “detectar dois elementos básicos na constituição de um costume. O primeiro são os fatos materiais, ou seja, o comportamento propriamente dito dos Estados; o segundo é a crença psicológica ou subjetiva de que tal comportamento é “segundo a lei”. Como observou a Corte
Internacional no caso Líbia/Malta, a substância do direito costumeiro deve ser “procurada em primeiro lugar na prática efetiva e na opinio juris dos Estados” [Nota de rodapé 6: ICJ Reports, 1985, PP.13, 29; 81 ILR, p. 239. Ver também o Parecer Consultivo sobre a Legalidade da ameaça ou uso de armas nucleares, ICJ Reports, 1996, pp. 226, 253; 110 ILR, p. 163 . In SHAW, Malcolm N. Direito Internacional. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla, Lenita Ananias do Nascimento, Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p.59.]
Passemos, pois, aos argumentos que permitem afirmar que a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade é um princípio geral de direito internacional amplamente aceito pelos Estados e, portanto, incorporado aos costumes internacionais.
Na Resolução da ONU nº 95, de 1946, a Assembleia Geral acolheu integralmente os princípios de direito internacional reconhecidos pelo Estatuto do Tribunal de Nuremberg e as sentenças do referido Tribunal. Relembre-se que aquele Tribunal havia procedido à definição de crimes contra a humanidade, bem como reconhecido a sua imprescritibilidade.
Posteriormente, a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade foi expressamente tratada na Resolução da ONU nº 3074, de 3 de dezembro de 1973, nos seguintes termos:
“1. Os crimes de guerra e os crimes de lesa-humanidade, onde for ou
qualquer que seja a data em que tenham sido cometidos, serão objeto de
uma investigação, e as pessoas contra as que existam provas de
culpabilidade na execução de tais crimes serão procuradas, detidas,
processadas e, em caso de serem consideradas culpadas, castigadas.
(...)
8. Os Estados não adotarão disposições legislativas nem tomarão medidas
de outra espécie que possam menosprezar as obrigações internacionais que
tenham acordado no tocante à identificação, à prisão, à extradição e ao
castigo dos culpáveis de crimes de guerra ou de crimes contra a
humanidade” [ Nota de rodapé 7: Tradução livre do texto. Disponível em:
HTTP://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/285/99/IMG/NR028599.pdf?OpenElement
Acesso em 25.09.2007. (Trecho extraído da bibliografia: WEICHERT, Marlon Alberto. “lei de anistia e
prescrição penal”. Revista Brasileira de Ciências Criminais 74. Editora Revista dos Tribunais, Setembrooutubro 2008. p. 200. // Nota de rodapé 8: Texto original: “1. War crimes and crimes against humanity, wherever they are committed, shall be subject to investigation and the persons against whom there is evidence that they have committed such crimes shall be subject to tracing, arrest, trial and, if found guilty, to punishment. (…) 8. States shall not take any legislative or other measures which may be prejudicial to the international obligations they have assumed in regard to the detection, arrest, extradition and punishment of persons guilty of war crimes and crimes against humanity.”, obtido do site das Nações Unidas, disponível em: http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/3074%28XXVIII%29&Lang=E&Area=RESOLUTION]
A força deste princípio, absorvido como verdadeiro costume internacional, permitiu fosse inserido em novos instrumentos internacionais, sendo de destacar-se sua previsão no Estatuto de Roma, que trata do Tribunal Penal Internacional.
O reconhecimento da imprescritibilidade de crimes de lesa-humanidade como um princípio geral de direito internacional, incorporado aos costumes internacionais, foi explicitamente realizado pela Corte Interamericana de Direitos, no “Caso Almonacid Arellano”:
"El Estado no podrá argüir ninguna ley ni disposición de derecho interno
para eximirse de la orden de la Corte de investigar y sancionar penalmente a
los responsables de la muerte del Sr. Almonacid Arellano. Chile no podrá
volver a aplicar el Decreto Ley n. 2.191, por todas las consideraciones dadas
en la presente Sentencia, puesto que el Estado está en la obligación de dejar
sin efecto el citado Decreto Ley (supra, párr. 144).
Pero además, el Estado no podrá argumentar prescripción, irretroactividad
de la ley penal, ni el principio non bis in idem, así como cualquier
excluyente similar de responsabilidad, para excusarse de su deber de
investigar y sancionar a los responsables" (párr. 150).”
(Voto razonado del Juez A.A. Cançado Trindade)
Não bastasse a natureza de costume internacional conferida à imprescritibilidade destes crimes, considero estarmos diante de verdadeiro ius cogens, que não pode ser ignorado pelos Estados .
Valho-me aqui, ainda uma vez, dos ensinamentos de SHAW:
“No caso Barcelona Traction, a Corte Internacional declarou que existe uma diferença
essencial entre as obrigações de um Estado perante a comunidade internacional como um
todo e as obrigações que o vinculam a outro Estado no campo específico da proteção
diplomática. Por sua própria natureza, as primeiras dizem respeito a todos os Estados, e
“pode-se considerar que todos os Estados têm um interesse legal em que elas sejam
protegidas; são obrigações erga omnes”. Como exemplos de obrigações desse tipo, foram
mencionadas a proibição da agressão e do genocídio e a proteção contra a escravização e a
discriminação racial. A elas poderíamos acrescentar a proibição da tortura. Além disso,
no caso Timor Leste, a Corte Internacional insistiu em que o direito dos povos à
autodeterminação “tem caráter erga omnes”, do mesmo modo, no caso Genocídio na
Bósnia (objeções processuais), reiterou que “os direitos e obrigações consagrados na
Convenção são direitos e obrigações erga omnes.
(...)
O artigo 53 da Convenção sobre o Direito dos Tratados, de 1969, prevê que um tratado
será nulo se, “no momento de sua conclusão, conflitar com uma norma imperativa do
direito internacional geral”. Esse princípio (jus cogens) também aplicar-se-ia no contexto
do direito consuetudinário, de tal modo que não seria permitida a derrogação dessas
normas pelo costume local ou especial.”
(SHAW, Malcolm N. Direito Internacional. Tradução de Marcelo Brandão
Cipolla, Lenita Ananias do Nascimento, Antônio de Oliveira Sette-Câmara.
São Paulo: Martins Fontes, 2010. p.97-98)
Trata-se, pois, a imprescritibilidade, de verdadeiro ius cogens, a ser respeitado pelos Estados.
Acrescento, ainda, que o Brasil, já em 1914 ratificou a Convenção Concernente às Leis e Usos da Guerra Terrestre, firmada em Haia em 1907, na qual reconhece “ o caráter normativo dos princípios jus gentium preconizados pelos usos estabelecidos entre as nações civilizadas, pelas leis da humanidade e pelas exigências da consciência pública” [Nota de rodapé 9: Weichert, pág. 203.] Desde o início do sec. XX, pois, reconhece a força normativa destes princípios.
Finalmente, é necessário deixar consignado que a força deste costume internacional remonta às decisões do Tribunal de Nuremberg, portanto em muito anteriores aos fatos ora em julgamento.
Por todo o exposto, e presente o suporte probatório mínimo configurador da justa causa, RECEBO A DENÚNCIA.
Defiro os requerimentos formulados na “b” de fls. 141, sendo certo que a letra “a” foi, ao que tudo indica, já cumprida pelo STM.
Citem-se os acusados para apresentação de resposta à acusação, nos termos do art. 406 do CPP.
À SEDRJ para as devidas anotações.
Rio de Janeiro, 13 de maio de 2014.
(Assinado eletronicamente, conforme Lei nº 11.419/2006)
ANA PAULA VIEIRA DE CARVALHO
Juiz (a) Federal Titular
Fonte: Blog da Janice
imagem de http://www.dhnet.org.br/
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