Artigo: " Os novos desafios advindos da macrocriminalidade e da sociedade de risco "
Domingo. 02 de Novembro de 2014
Por Ionilton Pereira do Vale*
Por Ionilton Pereira do Vale*
O «desafio do crime» é hoje fundamentalmente representado por certas manifestações da criminalidade organizada e da «macrocriminalidade» (JAGER) - terrorismo, tráfico ilícito de estupefacientes, armas ou automóveis - bem como da «criminalidade sistêmica» (crime ecológico, crime contra a economia, corrupção, etc.). Em face desta criminalidade - marcada, para além da organização (e também por causa dela), pela mobilidade e invisibilidade e gozando de uma imunidade privilegiada à devassa das instâncias formais de controlo nada mais indicado do que o recurso cada vez maior a todo um arsenal de métodos ocultos de intervenção e investigação. Como as escutas telefônicas, os microfones ou câmaras ocultas, as «testemunhas da coroa», os «homens de confiança», etc.. (ANDRÈ, Adélio Pereira.Processo Penal, justiça criminal e garantias fundamentais, in Revista do Ministério Público. Jornadas de processo penal, 2003, p15.)
Para além do flagelo do terrorismo, outras causas parecem querer derrubar, ou ao menos enfraquecer, o direito a um julgamento justo. Desde logo uma nova concepção de justiça, na qual as leis se retraem e cada vez é maior o papel do juiz. Neste quadro, os direitos do arguido demandam uma proteção acrescida. "The more freedomthe judge has in deciding on issues concerning problems of society, the more important the right to a fair trial becomes". Mais do que direitos meramente processuais, tornaram-se direitos substanciais. (SILVA, Jorge Pereira da.”Culturas da Cidadania”-Em torno de um acordão do TC e da nova lei da nacionalidade. Anotação ao acordão do Tribunal Constitucional nº 599/05, in:Jurisprudência constitucional, nº 11 jul/set 2006, (p72-89) p.80.)
O cibercrime, hoje é um desafio, até mesmo para os especialista. Enquanto a década de 1970 viu o primeiro crime grave ser cometido por computador, o papel relativamente lirnitado de computadores na vida diária fez com que tais delitos tipicamente relacionados ao furto de serviços de telecomunicações e transferência fraudulenta de eletrônica de fundos, não fossem devidamente apurados. Nas décadas subsequentes, com a rede mundial com cada vez, um numero maior de computadores e da proliferação de computadores pessoais transformou a criminalidade informática e viu a introdução de leis específicas para os crimes cometidos através de computadores. O rápido desenvolvimento tecnológico continua, e vai continuar, a apresentar novos desafios. A captação incessante da banda larga permite que os usuários utilizem muitas horas para deixar seus computadores conectados à Internet, assim deixam seus computadores mais vulneráveis a ataques externos. A tecnologia não só pode ser usado para transferir os conteúdos ilegais, mas também para disseminar malware orquestrada pelo Denial of Service ('doS'). A convergência de computação, telecomunicações transformou os telefones móveis em computadores em miniatura em rede, com potencial de atendimento para a criminalidade. (CLOUGH, Jonathan.Principles of cybercrime. Cambridge University press, 2008, p4)
O quadro dogmático, que se apresenta da transição da sociedade industrial, para a sociedade de risco, constituem objeto da teoria funcionalista. O direito, tem a função, na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, de reduzir as complexidades, apresentadas pela sociedade, através da generalização de expectativas normativas, mantendo o sistema estável.
A sociedade de risco também possui certa vinculação com o fenômeno da globalização e apresenta ao mundo do Direito Penal novas indagações. O risco é aumentado com o fenômeno da globalização, pois a expansão técnico-científica insere a fragilidade nos sistemas, enfraquecendo os Estados Democráticos de Direito. (FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada.1ª edição. São Paulo:Malheiros Editores.2002, p.113.)
Maiores ainda são os problemas práticos dos juízes modernos. A antiga frase "iura novit curia" já não é válida. O direito contemporâneo é extremamente complexo. Pode tomar-se como exemplo qualquer caso regulamentado pelo direito europeu ou internacional. Um brinquedo infantil produzido na China, importado para a Europa por um importador norte-americano e adquirido e revendido a vários níveis internacionais contém materiais prejudiciais. Qual é a situação legal, se não foi ainda detectado nenhum dano real? Ou: manteiga dinamarquesa subsidiada por Bruxelas é transportada para a Argélia através da Baviera e Itália para ser reimportada para o circuito europeu como óleo. Isto é uma fraude em termos de subsídios, mas ao abrigo de que lei? Um terceiro exemplo: Há seres humanos que contraem matrimônio mais do que urna vez nas suas vidas, tendo filhos de várias relações em diversos Estados. Em tempos de globalização um direito de família e um direito sucessório cada vez mais complexos são uma realidade que acontece quotidianamente mesmo em pequenos tribunais.
Por outras palavras: o juiz moderno é ao mesmo tempo um profissional prático especializado e um generalista que tem que lidar com enormes incertezas. Geralmente, ele não pensa nos seus fundamentos teóricos, mas sim na aquisição de informações e no processamento dessas informações, nos níveis hierárquicos de determinadas regras e nos limites da sua jurisdição. O juiz tem necessidade de possuir muito mais conhecimentos do que no passado, "uma simples consulta aos códigos" já não é suficiente, ele necessita de estar familiarizado com línguas estrangeiras e precisa de ter conhecimentos básicos acerca do Estado em que o seu "caso" realmente aconteceu. A imagem do juiz na Europa do século XXI já não corresponde ao idílico juiz do campo ou dos casos tradicionalmente domésticos passíveis de serem solucionados por ius patrium. (STOLLEIS, Michael. O perfil do juiz na tradição europeia, in O perfil do juiz na tradição européia. Coord. Doutor Antonio Pedro Barbas Homem et. Al.2007. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, p.33.)
Do lado da experiência coletiva em matéria de crime e de resposta ao crime, vivemos uma "situação marginal" (JASPERS), radicalmente nova e impressiva, de impacto centrífugo e esquizofrênico. Ao crescimento exponencial da massificada média e pequena criminalidade - que, nem por sê-lo, provoca menos alarme, desorganização social e anomia - soma-se a eclosão de novas manifestações de criminalidade organizada. Uma categorização provisória, marcada pela plasticidade da compreensão, abrangendo formas extremamente diversificas de criminalidade. Mas em que ganham peso privilegiado duas expressões fenomenológicas. (ANDRADE, Manuel da Costa.”Bruscamente no verão passado”. A reforma do Código de Processo penal. Coimbra:Coimbra editora.2009, p.15.).
Categoriza o ilustre jurista português, que de um lado, as organizações votadas ao crime económico-financeiro: marcadas pela sofisticação da organização e funcionamento, a invisibilidade dos gestos e movimentos, a imaterialidade dos "objectos da acção", o desprendimento das categorias tradicionais de agente e de espaço, situando-se ao nível "infra-vermelho" da conflitualidade, sugando a riqueza das nações e o sangue de milhões de vítimas que "não o são", não deixando manchas de sangue nem impressões digitais. Do outro lado, as organizações "infinitamente grandes" de terrorismo, dispondo de aparelhos de poder e meios de destruição à dimensão dos próprios Estados, movidos por um "fundamentalismo assassino" (STEINER), legitimado pelos gritos dos profetas e pelo apelo das trombetas de anjos a acenar com o paraíso ao alcance da mão. De qualquer forma, votando a vida e a obra à destruição dos alicerces da própria civilização que segregou o direito processual penal. O que coloca o cultor e aplicador do direito processual penal naquela situação dilemática e angustiada de que falava S. AGOSTINHO de termos de agarrar e segurar os dois extremos da corrente, apesar de não descortinarmos os elos que permitem ligar um extremo ao outro. (ANDRADE, Manuel da Costa.”Bruscamente no verão passado”., cit. P.15)
A Europa, por exemplo, em especial nos últimos anos, enfrenta problemas graves, que passam pelo terrorismo e pelos crimes violentos, praticados por imigrantes. Um dos países mais atingidos é a França, que têm de lidar com novos problemas relacionados com o terrorismo e imigração. Com o colapso de seu império norte-Africano, a França passou por uma grande imigração de árabes das ex-colônias de Algeria, Tunísia e Marrocos. A tensão racial e o conflito cultural resultaram, com problemas de cumprimento da lei e das operações judiciais. A França também é uma encruzilhada para a atividade terrorista, a partir de fontes internas e externas.
* o autor é Mestrado em Direito (Direito e Desenvolvimento) pela Universidade Federal do Ceará (2003). Doutorando pela Universidade de Lisboa. Promotor de Justiça - Procuradoria Geral da Justiça do Estado do Ceara.
fonte: Portal Atualidades do Direito
na íntegra
publicado originalmente em 01.nov.2014
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