Artigo: " Juízes Contra Corrupção "
Por Márcio Schiefler Fontes
Juiz de Direito em Santa catarina
Um espectro ronda a magistratura brasileira. É o espectro do merecimento - ou, mais propriamente, das promoções por merecimento. Na carreira da magistratura, é de observância obrigatória o art. 93, II, da Constituição da República: "promoção de entrância para entrância, alternadamente, por antiguidade e merecimento, atendidas as seguintes normas: [...] c) aferição do merecimento conforme o desempenho e pelos critérios objetivos de produtividade e presteza no exercício da jurisdição e pela frequência e aproveitamento em cursos oficiais ou reconhecidos de aperfeiçoamento". A Lei Orgânica da Magistratura Nacional impõe preceito análogo (art. 80). A Constituição determina, também, que todas as decisões - administrativas inclusive - do Poder Judiciário devem ser públicas e fundamentadas (art. 93, IX).
Com a criação do Conselho Nacional de Justiça, esta segunda norma (decisões abertas e fundamentadas também em âmbito administrativo) passou a ser cumprida, ao contrário da primeira, que - sejamos francos - é como se não existisse para uma boa parte dos tribunais. Obviamente compulsório, o comando constitucional de prestigiar o merecimento, alternado à antiguidade, nas movimentações dos juízes tem sido olimpicamente desprezado, em prejuízo do serviço forense e, por consequência, do contribuinte, que paga, quer e merece serviço público ágil e de qualidade. O Ministério Público, que deveria zelar pela aplicação escorreita da Constituição, também neste caso silencia em obscena cumplicidade, justamente porque suas movimentações - quando não tangenciam as eleições para a chefia da instituição - igualmente se limitam a bater palmas à fila indiana.
Os argumentos dos magistrados que se recusam a cumprir a Constituição são, basicamente, os seguintes: 1) não há critérios totalmente objetivos para sopesar o merecimento de cada postulante à promoção; 2) não há dados precisos e/ou confiáveis para aferir a produtividade; 3) cada processo judicial tem complexidade própria e o trabalho de proferir cada decisão não pode ser comparado; 4) a qualidade das decisões não aparece nas estatísticas; 5) os integrantes dos tribunais ("desembargadores" na tradição da Justiça dos Estados) não têm isenção e usariam as promoções por merecimento para beneficiar amigos e apadrinhados.
Esses argumentos, verdadeiras desculpas, são todos improcedentes. Os critérios objetivos estão expressos na própria norma constitucional cujo cumprimento se renega: produtividade, presteza, cursos (oficiais ou reconhecidos). A já mencionada LOMAN aponta: conduta, operosidade, listas, cursos. Outros decorrem da lógica incontornável de enaltecer o interesse institucional: participação voluntária em mutirões; elogios constantes em anotações funcionais; exercício de outras funções relevantes ao respectivo tribunal etc.
Não se pode dizer que não há critérios objetivos apenas porque os integrantes dos tribunais os analisarão com sua subjetividade individual, conferindo pesos diferentes a cada fato. Do contrário, teríamos de admitir que as decisões judiciais também não têm objetividade, já que a base legal (objetiva) é inegavelmente interpretada com subjetividade por cada aplicador. Por esse raciocínio seria mais honesto proclamar ao povo que seus juízes julgam sem objetividade nenhuma, só de acordo com o que lhes dá vontade. Essa ânsia, falsamente moralista, por "objetividade", além de invariavelmente conduzir a injustiças (summum ius, summa injuria) cobre de ridículo a própria jurisdição, na qual é clamorosa a parcela de subjetividade posta à disposição do julgador. Se a decisão pudesse ser puramente objetiva, nem seria necessário votação pelo tribunal. Um sistema de pontos e um programa de computador dariam o promovido.
É bem o contrário, pois todos sabemos que será a soma das avaliações subjetivas, cada uma lastreada nos critérios objetivos e proferida em voto aberto, que dará a decisão administrativa do colegiado. Exatamente como nos processos judiciais, nos quais a soma das apreciações subjetivas, cada uma lastreada nos critérios objetivos da legislação e proferida em voto aberto, dá a decisão judicial do órgão colegiado.
Por outro lado, embora verdade que sejam raros dados transparentes acerca da efetiva atividade desempenhada por cada integrante do Ministério Público, não se pode dizer o mesmo da magistratura. A grande maioria dos tribunais produz ricos mapas estatísticos, com minuciosos dados de produtividade, de cada magistrado e em cada período. Boa parte das cortes tem pessoal técnico-administrativo apto a oferecer aos votantes informações precisas do que o juiz fez ou deixou de fazer: quantas sentenças de mérito, sentenças sem mérito, maior complexidade, menor complexidade, decisões, despachos, conciliações celebradas, audiências realizadas, pessoas ouvidas, júris presididos etc.
Se isso não bastasse, as informações são facilmente enquadráveis em tabelas comparativas, que contrastem unidades de igual categoria e, mesmo dentro desta, apreciando-se varas com movimentação processual semelhante, de forma a conhecer com exatidão a operosidade daquele juiz em cotejo com a de juízes em condições idênticas ou muito semelhantes. Não se comparem secamente varas cíveis às criminais, ou varas de metrópoles com varas de rincões, ou varas de competências distintas. As peculiaridades, como no caso dos juízes substitutos, se de um lado demandam atenção ainda mais competente e minuciosa por parte das corregedorias em particular, e dos tribunais de maneira geral, de outro não têm o condão de afastar a realidade. A enfadonha e fugidia máxima "cada processo é um processo" (ou "uma vez levei uma semana para julgar um processo") não resiste um segundo à realidade de médias mensais de larga abrangência, nas quais perfilham-se centenas e centenas de processos.
A qualidade das decisões, por sua vez, é sim uma preocupação, mas cabe lembrar que o ofício precípuo dos tribunais é, em aspecto essencial, examinar a qualidade das decisões do primeiro grau. A maior parte do tempo de atividade no segundo grau orbita justamente em torno da atividade do primeiro grau. Supor que seus integrantes não levem em consideração a qualidade do serviço prestado pelos juízes no primeiro grau equivale, em última análise, a considerar que na verdade não estão exercendo suas funções.
No mesmo sentido, se partirmos do pressuposto de que os integrantes dos tribunais não votariam com isenção, pouco resta a fazer. Até porque, virando-se a moeda, também é renegando o merecimento que se consegue promover o juiz medíocre do grupo preferido em detrimento do juiz exemplar, mas "filiado" a outra corrente interna da magistratura. São sinais invertidos duma mesma equação.
Custa concluir qual desculpa há de horrorizar mais o homem comum: o de que os desembargadores não cumprem com suas funções; o de que os tribunais são compostos majoritariamente por gente desonesta e/ou despreparada; ou o de que os juízes, já que usam de subjetividade nas suas decisões, estão a julgar como lhes dá na telha. E para completar: afirmar que o juiz de primeira instância esteja apto a manipular votos abertos e fundamentados de dezenas de seus superiores é lançar mão da máxima exceção para compor a regra, pura falácia.
A verdade é uma só. A ordem do art. 93, um autêntico poder-dever, é clara: que os tribunais, nas promoções por merecimento, debrucem-se sobre os dados estatísticos e sobre as fichas funcionais para aplicar ao caso concreto - com subjetividade, sim - os critérios objetivos emanados da Constituição e das leis, exatamente da mesma forma que o mesmo coletivo de magistrados, nos processos judiciais, aplica ao caso concreto - com subjetividade, sim - os critérios objetivos emanados da Constituição e das leis.
As injustiças são sim uma possibilidade. Fala-se muito daquele colega que foi, é, ou poderá vir a ser preterido, mesmo sendo honesto e trabalhador. Mas parece proibido falar das injustiças que vêm sendo cometidas há anos com juízes operosos, dedicados, comprometidos, que são preteridos em promoções ditas "por merecimento" por juízes desidiosos, displicentes, morosos, sob a desculpa esfarrapada do "sem critério, voto no mais antigo". Ou mesmo por juízes apenas não tão operosos, que optam - validamente, frise-se - por dedicar-se com mais afinco à academia, às suas famílias, a questões pessoais, enfim, a outros assuntos. Falecido desembargador catarinense, exemplar, certa vez concluiu: "a carreira deveria privilegiar, antes de tudo, quem privilegia a carreira". A promoção por merecimento existe justamente para exortar quem queira progredir "mais rápido" a entregar-se de corpo e alma ao trabalho. Isso é o que a sociedade deseja. Todavia, ninguém é obrigado a agir assim: serão também contemplados, mas em tempo menos exíguo, por movimentações igualmente honrosas.
Pois entender que a promoção por merecimento escolhe apenas um juiz merecedor, declarando ipso facto que os demais candidatos não têm mérito nenhum, é de uma estupidez ímpar, que flerta com a má-fé (culpa lata dolo aequiparatur): assim como na promoção por antiguidade não se declara que só um tem antiguidade, mas sim se apura quem tem mais antiguidade, na promoção por merecimento também não se declara que só um tem merecimento, mas sim se apura quem mostrou mais merecimento no restrito período analisado.
Portanto, numa promoção que se diga "por merecimento", é evidente que o candidato mais antigo não precisa ser um pária para ser superado por candidato mais moderno. Pela Constituição, hipoteticamente falando, mesmo o juiz regular, sem máculas, pode ainda assim ser superado por candidato mais moderno que demonstre dedicação extremada ao exercício da jurisdição no último período. Nada impede que o preterido, atento à interpretação dominante em seu tribunal, entregue-se com afinco a suas funções e, na promoção para a entrância seguinte, retome daquele a posição perdida. Não só nada impede como essa é a ideia: incentivar que os juízes trabalhem mais, em prol da sociedade, atacando nessa função tão relevante a regra geral do serviço público, que é nivelar por baixo.
Há, é verdade, uma ressalva bem intencionada, parênteses em meio à maré negativa que teima em fomentar, contra o merecimento, o pacto da mediocridade. Pois embora vá de encontro a entendimento expresso do Supremo Tribunal, segundo o qual é nula a promoção na qual a antiguidade sirva de desempate no critério de merecimento, merece respeito a preocupação sincera daqueles que defendem que a antiguidade deva prevalecer caso persista dúvida grave depois de detida análise do merecimento. De todo modo, o que não se pode admitir, de maneira nenhuma, é a proposta esdrúxula de que o critério de merecimento seja transformado num critério negativo, de forma que no merecimento o candidato mais antigo não seja promovido somente se não exibir "merecimento suficiente". Isso porque não ter "merecimento suficiente" já é, em larga medida, motivo para não promovê-lo dentro do próprio critério de antiguidade - e mesmo para apuração de falta funcional. Bem diverso, o critério de merecimento é, conforme iterativa jurisprudência, um critério positivo, de incentivo à competição entre os magistrados, em natural benefício do jurisdicionado.
O fato é que a antiguidade já é garantida duplamente: não só em metade de todas as promoções, alternadamente, mas também dentro da outra metade, porque pelo critério de merecimento só é elegível, a princípio, a quinta parte mais antiga da lista (art. 93, II, b) - recentemente turbinada, pelo CNJ, com os inventados "quintos sucessivos" (Resolução 106/2010).
A esta altura já cabem perguntas além da "zona de conforto": que há de sagrado na antiguidade, e de espúrio no merecimento? De onde vem a antiguidade? Vem de Deus, absoluto e infalível? Não. A antiguidade nasce nos concursos públicos, cujas etapas e critérios são não raro extremamente controversos, para usar um termo brando (e aqui não me reporto às fraudes, que também existem). Quão curioso é testemunhar aqueles, que até as vésperas de serem aprovados vociferavam contra falhas dos concursos, no dia seguinte à aprovação não admitirem mais a possibilidade de serem avaliados, nunca mais. Quer dizer: os concursos, cujas provas dariam livros de polêmica, de repente tornam-se divinamente perfeitos, a derramar objetividade e pureza em quadros imutáveis. De outro lado, anos de magistratura, de efetivo exercício do cargo, não significam nada: "tudo é subjetivo", "tudo é relativo", "esses dados não provam nada", "números também mentem", "cada processo é um processo" e toda aquela ladainha de sempre.
Valorizemos nossas virtudes. Outro erudito desembargador hoje falecido, veterano de bancas de ingresso, costumava ponderar do alto de seu alquebrado vulto: "O concurso jamais poderá selecionar bons juízes, pelo simples fato de que os candidatos não são juízes, são ainda candidatos. Na melhor das hipóteses, o concurso ideal conseguirá recrutar meros bons candidatos. É na prática efetiva da judicatura que os juízes serão avaliados de verdade". E é justamente essa prática efetiva que a Constituição ordena que seja examinada nas promoções por merecimento.
Está claro que os debates sobre o assunto só fazem chover no molhado: 1) a Constituição manda prestigiar o merecimento; e 2) há critérios objetivos de sobra. Basta aplicá-los. Porque rasgar a Constituição, de votação em votação, dando as costas a uma excelente ferramenta colocada à disposição dos tribunais, não tem outro resultado senão dar razão aos detratores da magistratura, para os quais os juízes querem portar um salvo-conduto para só gozar privilégios, sem cobrança por resultados e sem o risco de arcarem com consequências por não priorizarem o trabalho.
Antiguidade, sim. Mas merecimento também. A alternância obrigatória de critérios já vai longe, remonta à primeira metade do século XX. A LOMAN é de 1979. A Constituição é de 1988. A jurisprudência do STF é antiquíssima, reiterada, consolidada. Mais recentemente subiu ao palco a Resolução 106 do CNJ. Vai "pegar"? Estamos em 2011. Já passou da hora de virar a página. A sociedade não suporta mais ser refém da mentalidade de repartição pública do século XIX que insiste em se perpetuar no Judiciário. Como é triste a pergunta que surge em cada sessão de promoção por merecimento: vamos cumprir ou não a Constituição?
Atribui-se a Rui Barbosa o vaticínio: "Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de estado, interesse supremo: como quer que te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para juízes covardes".
(*) O autor é Mestre em Estudos da Tradução pela UFSC, Especialista em Gestão Judicial pela UNISUL, autor do livro "Magistratura Catarinense" (Conceito Editorial).
Juiz de Direito em Santa catarina
Um espectro ronda a magistratura brasileira. É o espectro do merecimento - ou, mais propriamente, das promoções por merecimento. Na carreira da magistratura, é de observância obrigatória o art. 93, II, da Constituição da República: "promoção de entrância para entrância, alternadamente, por antiguidade e merecimento, atendidas as seguintes normas: [...] c) aferição do merecimento conforme o desempenho e pelos critérios objetivos de produtividade e presteza no exercício da jurisdição e pela frequência e aproveitamento em cursos oficiais ou reconhecidos de aperfeiçoamento". A Lei Orgânica da Magistratura Nacional impõe preceito análogo (art. 80). A Constituição determina, também, que todas as decisões - administrativas inclusive - do Poder Judiciário devem ser públicas e fundamentadas (art. 93, IX).
Com a criação do Conselho Nacional de Justiça, esta segunda norma (decisões abertas e fundamentadas também em âmbito administrativo) passou a ser cumprida, ao contrário da primeira, que - sejamos francos - é como se não existisse para uma boa parte dos tribunais. Obviamente compulsório, o comando constitucional de prestigiar o merecimento, alternado à antiguidade, nas movimentações dos juízes tem sido olimpicamente desprezado, em prejuízo do serviço forense e, por consequência, do contribuinte, que paga, quer e merece serviço público ágil e de qualidade. O Ministério Público, que deveria zelar pela aplicação escorreita da Constituição, também neste caso silencia em obscena cumplicidade, justamente porque suas movimentações - quando não tangenciam as eleições para a chefia da instituição - igualmente se limitam a bater palmas à fila indiana.
Os argumentos dos magistrados que se recusam a cumprir a Constituição são, basicamente, os seguintes: 1) não há critérios totalmente objetivos para sopesar o merecimento de cada postulante à promoção; 2) não há dados precisos e/ou confiáveis para aferir a produtividade; 3) cada processo judicial tem complexidade própria e o trabalho de proferir cada decisão não pode ser comparado; 4) a qualidade das decisões não aparece nas estatísticas; 5) os integrantes dos tribunais ("desembargadores" na tradição da Justiça dos Estados) não têm isenção e usariam as promoções por merecimento para beneficiar amigos e apadrinhados.
Esses argumentos, verdadeiras desculpas, são todos improcedentes. Os critérios objetivos estão expressos na própria norma constitucional cujo cumprimento se renega: produtividade, presteza, cursos (oficiais ou reconhecidos). A já mencionada LOMAN aponta: conduta, operosidade, listas, cursos. Outros decorrem da lógica incontornável de enaltecer o interesse institucional: participação voluntária em mutirões; elogios constantes em anotações funcionais; exercício de outras funções relevantes ao respectivo tribunal etc.
Não se pode dizer que não há critérios objetivos apenas porque os integrantes dos tribunais os analisarão com sua subjetividade individual, conferindo pesos diferentes a cada fato. Do contrário, teríamos de admitir que as decisões judiciais também não têm objetividade, já que a base legal (objetiva) é inegavelmente interpretada com subjetividade por cada aplicador. Por esse raciocínio seria mais honesto proclamar ao povo que seus juízes julgam sem objetividade nenhuma, só de acordo com o que lhes dá vontade. Essa ânsia, falsamente moralista, por "objetividade", além de invariavelmente conduzir a injustiças (summum ius, summa injuria) cobre de ridículo a própria jurisdição, na qual é clamorosa a parcela de subjetividade posta à disposição do julgador. Se a decisão pudesse ser puramente objetiva, nem seria necessário votação pelo tribunal. Um sistema de pontos e um programa de computador dariam o promovido.
É bem o contrário, pois todos sabemos que será a soma das avaliações subjetivas, cada uma lastreada nos critérios objetivos e proferida em voto aberto, que dará a decisão administrativa do colegiado. Exatamente como nos processos judiciais, nos quais a soma das apreciações subjetivas, cada uma lastreada nos critérios objetivos da legislação e proferida em voto aberto, dá a decisão judicial do órgão colegiado.
Por outro lado, embora verdade que sejam raros dados transparentes acerca da efetiva atividade desempenhada por cada integrante do Ministério Público, não se pode dizer o mesmo da magistratura. A grande maioria dos tribunais produz ricos mapas estatísticos, com minuciosos dados de produtividade, de cada magistrado e em cada período. Boa parte das cortes tem pessoal técnico-administrativo apto a oferecer aos votantes informações precisas do que o juiz fez ou deixou de fazer: quantas sentenças de mérito, sentenças sem mérito, maior complexidade, menor complexidade, decisões, despachos, conciliações celebradas, audiências realizadas, pessoas ouvidas, júris presididos etc.
Se isso não bastasse, as informações são facilmente enquadráveis em tabelas comparativas, que contrastem unidades de igual categoria e, mesmo dentro desta, apreciando-se varas com movimentação processual semelhante, de forma a conhecer com exatidão a operosidade daquele juiz em cotejo com a de juízes em condições idênticas ou muito semelhantes. Não se comparem secamente varas cíveis às criminais, ou varas de metrópoles com varas de rincões, ou varas de competências distintas. As peculiaridades, como no caso dos juízes substitutos, se de um lado demandam atenção ainda mais competente e minuciosa por parte das corregedorias em particular, e dos tribunais de maneira geral, de outro não têm o condão de afastar a realidade. A enfadonha e fugidia máxima "cada processo é um processo" (ou "uma vez levei uma semana para julgar um processo") não resiste um segundo à realidade de médias mensais de larga abrangência, nas quais perfilham-se centenas e centenas de processos.
A qualidade das decisões, por sua vez, é sim uma preocupação, mas cabe lembrar que o ofício precípuo dos tribunais é, em aspecto essencial, examinar a qualidade das decisões do primeiro grau. A maior parte do tempo de atividade no segundo grau orbita justamente em torno da atividade do primeiro grau. Supor que seus integrantes não levem em consideração a qualidade do serviço prestado pelos juízes no primeiro grau equivale, em última análise, a considerar que na verdade não estão exercendo suas funções.
No mesmo sentido, se partirmos do pressuposto de que os integrantes dos tribunais não votariam com isenção, pouco resta a fazer. Até porque, virando-se a moeda, também é renegando o merecimento que se consegue promover o juiz medíocre do grupo preferido em detrimento do juiz exemplar, mas "filiado" a outra corrente interna da magistratura. São sinais invertidos duma mesma equação.
Custa concluir qual desculpa há de horrorizar mais o homem comum: o de que os desembargadores não cumprem com suas funções; o de que os tribunais são compostos majoritariamente por gente desonesta e/ou despreparada; ou o de que os juízes, já que usam de subjetividade nas suas decisões, estão a julgar como lhes dá na telha. E para completar: afirmar que o juiz de primeira instância esteja apto a manipular votos abertos e fundamentados de dezenas de seus superiores é lançar mão da máxima exceção para compor a regra, pura falácia.
A verdade é uma só. A ordem do art. 93, um autêntico poder-dever, é clara: que os tribunais, nas promoções por merecimento, debrucem-se sobre os dados estatísticos e sobre as fichas funcionais para aplicar ao caso concreto - com subjetividade, sim - os critérios objetivos emanados da Constituição e das leis, exatamente da mesma forma que o mesmo coletivo de magistrados, nos processos judiciais, aplica ao caso concreto - com subjetividade, sim - os critérios objetivos emanados da Constituição e das leis.
As injustiças são sim uma possibilidade. Fala-se muito daquele colega que foi, é, ou poderá vir a ser preterido, mesmo sendo honesto e trabalhador. Mas parece proibido falar das injustiças que vêm sendo cometidas há anos com juízes operosos, dedicados, comprometidos, que são preteridos em promoções ditas "por merecimento" por juízes desidiosos, displicentes, morosos, sob a desculpa esfarrapada do "sem critério, voto no mais antigo". Ou mesmo por juízes apenas não tão operosos, que optam - validamente, frise-se - por dedicar-se com mais afinco à academia, às suas famílias, a questões pessoais, enfim, a outros assuntos. Falecido desembargador catarinense, exemplar, certa vez concluiu: "a carreira deveria privilegiar, antes de tudo, quem privilegia a carreira". A promoção por merecimento existe justamente para exortar quem queira progredir "mais rápido" a entregar-se de corpo e alma ao trabalho. Isso é o que a sociedade deseja. Todavia, ninguém é obrigado a agir assim: serão também contemplados, mas em tempo menos exíguo, por movimentações igualmente honrosas.
Pois entender que a promoção por merecimento escolhe apenas um juiz merecedor, declarando ipso facto que os demais candidatos não têm mérito nenhum, é de uma estupidez ímpar, que flerta com a má-fé (culpa lata dolo aequiparatur): assim como na promoção por antiguidade não se declara que só um tem antiguidade, mas sim se apura quem tem mais antiguidade, na promoção por merecimento também não se declara que só um tem merecimento, mas sim se apura quem mostrou mais merecimento no restrito período analisado.
Portanto, numa promoção que se diga "por merecimento", é evidente que o candidato mais antigo não precisa ser um pária para ser superado por candidato mais moderno. Pela Constituição, hipoteticamente falando, mesmo o juiz regular, sem máculas, pode ainda assim ser superado por candidato mais moderno que demonstre dedicação extremada ao exercício da jurisdição no último período. Nada impede que o preterido, atento à interpretação dominante em seu tribunal, entregue-se com afinco a suas funções e, na promoção para a entrância seguinte, retome daquele a posição perdida. Não só nada impede como essa é a ideia: incentivar que os juízes trabalhem mais, em prol da sociedade, atacando nessa função tão relevante a regra geral do serviço público, que é nivelar por baixo.
Há, é verdade, uma ressalva bem intencionada, parênteses em meio à maré negativa que teima em fomentar, contra o merecimento, o pacto da mediocridade. Pois embora vá de encontro a entendimento expresso do Supremo Tribunal, segundo o qual é nula a promoção na qual a antiguidade sirva de desempate no critério de merecimento, merece respeito a preocupação sincera daqueles que defendem que a antiguidade deva prevalecer caso persista dúvida grave depois de detida análise do merecimento. De todo modo, o que não se pode admitir, de maneira nenhuma, é a proposta esdrúxula de que o critério de merecimento seja transformado num critério negativo, de forma que no merecimento o candidato mais antigo não seja promovido somente se não exibir "merecimento suficiente". Isso porque não ter "merecimento suficiente" já é, em larga medida, motivo para não promovê-lo dentro do próprio critério de antiguidade - e mesmo para apuração de falta funcional. Bem diverso, o critério de merecimento é, conforme iterativa jurisprudência, um critério positivo, de incentivo à competição entre os magistrados, em natural benefício do jurisdicionado.
O fato é que a antiguidade já é garantida duplamente: não só em metade de todas as promoções, alternadamente, mas também dentro da outra metade, porque pelo critério de merecimento só é elegível, a princípio, a quinta parte mais antiga da lista (art. 93, II, b) - recentemente turbinada, pelo CNJ, com os inventados "quintos sucessivos" (Resolução 106/2010).
A esta altura já cabem perguntas além da "zona de conforto": que há de sagrado na antiguidade, e de espúrio no merecimento? De onde vem a antiguidade? Vem de Deus, absoluto e infalível? Não. A antiguidade nasce nos concursos públicos, cujas etapas e critérios são não raro extremamente controversos, para usar um termo brando (e aqui não me reporto às fraudes, que também existem). Quão curioso é testemunhar aqueles, que até as vésperas de serem aprovados vociferavam contra falhas dos concursos, no dia seguinte à aprovação não admitirem mais a possibilidade de serem avaliados, nunca mais. Quer dizer: os concursos, cujas provas dariam livros de polêmica, de repente tornam-se divinamente perfeitos, a derramar objetividade e pureza em quadros imutáveis. De outro lado, anos de magistratura, de efetivo exercício do cargo, não significam nada: "tudo é subjetivo", "tudo é relativo", "esses dados não provam nada", "números também mentem", "cada processo é um processo" e toda aquela ladainha de sempre.
Valorizemos nossas virtudes. Outro erudito desembargador hoje falecido, veterano de bancas de ingresso, costumava ponderar do alto de seu alquebrado vulto: "O concurso jamais poderá selecionar bons juízes, pelo simples fato de que os candidatos não são juízes, são ainda candidatos. Na melhor das hipóteses, o concurso ideal conseguirá recrutar meros bons candidatos. É na prática efetiva da judicatura que os juízes serão avaliados de verdade". E é justamente essa prática efetiva que a Constituição ordena que seja examinada nas promoções por merecimento.
Está claro que os debates sobre o assunto só fazem chover no molhado: 1) a Constituição manda prestigiar o merecimento; e 2) há critérios objetivos de sobra. Basta aplicá-los. Porque rasgar a Constituição, de votação em votação, dando as costas a uma excelente ferramenta colocada à disposição dos tribunais, não tem outro resultado senão dar razão aos detratores da magistratura, para os quais os juízes querem portar um salvo-conduto para só gozar privilégios, sem cobrança por resultados e sem o risco de arcarem com consequências por não priorizarem o trabalho.
Antiguidade, sim. Mas merecimento também. A alternância obrigatória de critérios já vai longe, remonta à primeira metade do século XX. A LOMAN é de 1979. A Constituição é de 1988. A jurisprudência do STF é antiquíssima, reiterada, consolidada. Mais recentemente subiu ao palco a Resolução 106 do CNJ. Vai "pegar"? Estamos em 2011. Já passou da hora de virar a página. A sociedade não suporta mais ser refém da mentalidade de repartição pública do século XIX que insiste em se perpetuar no Judiciário. Como é triste a pergunta que surge em cada sessão de promoção por merecimento: vamos cumprir ou não a Constituição?
Atribui-se a Rui Barbosa o vaticínio: "Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de estado, interesse supremo: como quer que te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para juízes covardes".
(*) O autor é Mestre em Estudos da Tradução pela UFSC, Especialista em Gestão Judicial pela UNISUL, autor do livro "Magistratura Catarinense" (Conceito Editorial).
Fonte: blogdofred(folhaonline)
publicado originalmente no jornal Carta Forense
publicado originalmente no jornal Carta Forense
extraído ipsis litteris
em 20.11.11
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