I.Renda: Dedução de despesas médicas pode mudar
Quinta feira, 29 de Julho de 2021
Por Ludmila Mara Monteiro de Oliveira*
No próximo dia 6 de agosto haverá, em sessão extraordinária, reunião do Pleno [1] e das turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais, quando serão votadas aprovação ou cancelamento de 45 enunciados de súmula [2], cujo quórum é de, no mínimo, três quintos da totalidade da composição do respectivo colegiado [3]. As propostas, previamente remetidas, são de iniciativa das conselheiras e dos conselheiros do Carf, do procurador-geral da Fazenda Nacional, do secretário da Receita Federal do Brasil, bem como dos presidentes das entidades sindicais e patronais com assento no Carf [4].
Entre as propostas de enunciado de súmula está a que determina que "para fins de comprovação de despesas médicas, a apresentação de recibos não exclui a possibilidade de exigência de elementos comprobatórios adicionais". Dúvidas quanto aos limites e à documentação comprobatória necessária para a dedução das despesas médicas da base de cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) costumam ser objeto de reportagens jornalísticas que, às vésperas da data-limite de entrega da respectiva declaração, tentam instruir contribuintes sobre como fazê-la. No âmbito do Carf, a temática foi objeto de mais de 2,6 mil acórdãos prolatados desde o ano passado até o fechamento desta edição [5], o que demonstra seu realce.
Tanto o Decreto nº 3.000/99 (RIR/99) quanto aquele de nº 9.580/18 (RIR/18), que o revogou, trazem a possibilidade de dedução dos desembolsos efetuados a uma gama de prestadores de serviços — entre os quais enumerados os médicos, os dentistas, os psicólogos, os fisioterapeutas, os fonoaudiólogos, os terapeutas ocupacionais e hospitais, além das despesas com exames laboratoriais, serviços radiológicos, aparelhos ortopédicos e próteses ortopédicas e dentárias. E assim não poderia deixar de ser, já que a Lei nº 9.250/95, que trouxe alterações à legislação do Imposto de Renda das Pessoas Físicas, na alínea "a" do inciso II do artigo 8º traz a previsão da possibilidade de dedução.
Em ambos os regulamentos postos requisitos para a retirada das despesas da base de cálculo do IRPF, entre elas a que determina estarem limitadas "aos pagamentos especificados e comprovados, com indicação do nome, do endereço e do número de inscrição no CPF ou no CNPJ de quem os recebeu, e, na falta de documentação, ser feita indicação do cheque nominativo pelo qual foi efetuado o pagamento" [6]. Os decretos regulamentadores explicitam ainda que todas "as deduções ficam sujeitas à comprovação ou à justificação, a juízo da autoridade lançadora" [7]; mas apenas no RIR/18, melhor salvaguardando os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, é expressamente previsto que "o sujeito passivo será intimado a apresentar, no prazo estabelecido na intimação, esclarecimentos ou documentos sobre inconsistências ou indícios de irregularidade fiscal detectados nas revisões de declarações, exceto quando a autoridade fiscal dispuser de elementos suficientes para a constituição do crédito tributário" [8].
Firmadas essas premissas, mister analisar como tem o Carf se posicionado quando a matéria lhe é devolvida.
Há quem sustente que, havendo a apresentação de recibos que preencham os requisitos previstos na legislação e inexistindo motivos concretos para que aventada a insubsistência da dedução da despesa médica, despicienda a juntada de documentos complementares e imperioso o afastamento da glosa. Portanto, "bastaria a apresentação dos recibos pelos respectivos profissionais, devendo tais documentos trazerem elementos suficientes para identificação do prestador de serviço que recebeu os valores despendidos pelo contribuinte" [9].
Mesmo a carência de elementos previstos na legislação não justificaria, ao sentir de alguns, a glosa da despesa. Sob o fundamento de que a "autoridade fiscal tinha condição de encontrar a profissional, já que em todos os recibos havia seu carimbo contendo seu nome completo e número de sua identidade profissional" [10], é sustentado que a glosa, pela falta de informações nos recibos do endereço profissional do prestador do serviço e da indicação do beneficiário do tratamento, privilegiaria um "formalismo exagerado", não sendo "razoável".
Noutro giro, há corrente que sustenta que o fato de terem sido apresentados recibos não obsta a requisição de documentos complementares pela autoridade fiscalizadora, sempre que configurados indícios da inveracidade dos dispêndios. O argumento é de que "os recibos são meios de prova, mão não a prova em si, podendo ser questionados em situações em que se apresentem indícios de irregularidade, como é o caso de dedução de despesas em valor elevado em relação aos rendimentos declarados" [11]. É importante destacar que, mesmo aqueles que partem dessa premissa, podem divergir quanto ao desfecho da querela. Isso porque existe um grau de subjetividade não só na determinação daquilo que poderia configurar "indícios de irregularidade", como ainda na satisfatoriedade da documentação acostada em complementação aos meros recibos. A 2ª Turma Especial da 2ª Seção e a Câmara Superior do Carf, ao apreciar o mesmo conjunto fático-probatório sob premissas equivalentes, proferiram decisões díspares.
A turma ordinária, embora consubstanciado serem os recibos aptos a comprovar as despesas médicas, "salvo quando comprovada nos autos a existência de indícios veementes de que os serviços consignados nos recibos não foram de fato executados ou o pagamento não foi efetuado" [12], entendeu que a autoridade fiscal falhou em apontar "indícios suficientes em desfavor dos documentos apresentados pelo recorrente, logo, não há nos autos elementos que permitam afastar a idoneidade dos documentos apresentados pelo requerente para fazer jus às deduções pleiteadas" [13]. Ao recurso interposto pelo contribuinte foi dado provimento.
Já no voto vencedor proferido pela câmara superior, em que pese igualmente afirmado que "diante de situações especiais, em que haja fundada dúvida da efetividade dos serviços prestados e dos pagamentos objeto da dedução, é lícito ao Fisco exigir elementos adicionais de prova para confirmar a dedução" [14], diferentemente entendeu-se "que a relação entre o montante das deduções de despesas médicas e os rendimentos declarados, de mais de 50%, mais que justificava a cautela do Fisco em exigir elementos adicionais de prova" [15]. Acrescentou-se que, não tendo o contribuinte atendido à intimação para comprovar o efetivo desembolso, restaria incólume a autuação, devendo ser rechaçada a sua pretensão [16].
Muitas são as realidades fáticas descortinadas: casos em que efetuada a glosa das deduções sem que oportunizada a complementação da documentação apresentada, situações em que reiteradamente intimado para acostar novas provas permanece o contribuinte inerte [17], despesas incompatíveis com rendimentos auferidos, recibos emitidos ao arrepio dos requisitos previsto na legislação, exigência de documentos sem amparo normativo [18], formas não ortodoxas de pagamento das despesas [19], entre tantas outras. Somada a isso está a subjetividade de cada autoridade julgadora, que, na apreciação das provas carreadas, poderá formar livremente a sua convicção. Como bem salientado pela conselheira Maria Helena Cotta Cardozo, em acórdão de sua lavra, "o julgador tem o direito de formar sua convicção, e para isso não pode fechar os olhos a todos os elementos que, agregados ao fundamento da falta de comprovação do pagamento, contribuem para a tomada de decisão" [20].
Justamente por esses motivos sói acontecer a prolatação de acórdãos não unânimes, sinalizando pela possibilidade de, sob várias lentes, apreciar a (in)subsidência da dedução das despesas médicas, relativas aos tratamentos aos quais submetido o contribuinte e seus dependentes.
Não se questiona a importância de, através de um pequeno enunciado, demonstrar qual a interpretação prevalente de um órgão julgador sobre determinada matéria. Tampouco se desconhece que o objetivo primeiro da edição de súmulas é conferir maior segurança e simplificar o julgamento de questões assaz recorrentes. Inadmissível, entretanto, é que seja o verbete sumular aplicado sem a devida atenção às peculiaridades do caso concreto. Se assim for, corre-se o risco de prolatação em massa de julgados de forma acrítica, alheio à realidade fática descortinada no caderno processualínea. Que sejam as novas súmulas bem-vindas, sem que se esqueçam as conselheiras e os conselheiros que, quanto mais abstratas forem, mais cautela precisarão ter no momento de sua aplicação.
* A autora é a é doutora em Direito Tributário pela UFMG, com período de investigação na McGill University. Foi residente pós-doutoral na UFMG. Conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf; professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.
[1] Art. 27 do RICarf: "O Pleno da CSRF, composto pelo presidente e vice-presidente do Carf e pelos demais membros das turmas da CSRF, reunir-se-á quando convocado pelo Presidente do Carf para deliberar sobre matéria previamente indicada".
[2] A pauta da sessão está na Portaria Carf/ME nº 7.974, de 2 de julho de 2021.
[3] Cf. §2º do artigo 72 do RICarf.
[4] Vide artigo 73 do RICarf.
[5] O novo sistema de pesquisa de acórdãos disponibilizado no sítio eletrônico do Carf, o VER, permite a aplicação de inúmeros filtros, dentre os quais o levantamento quantitativo de acórdãos publicados anualmente acerca do tema buscado. O acesso ao sistema está disponível em: < https://acordaos.economia.gov.br/solr/acordaos2/browse/>.
[6] Redação do inciso III do §1º do artigo 73 do RIR/18, cuja redação é praticamente idêntica a do inciso III do §1º do artigo 80 do RIR/99, uma vez que assim disposto no inciso III do §2º do artigo 8º da Lei nº 9.250/95.
[7] Vide artigo 66 do RIR/18 e artigo 73 do RIR/99.
[8] Cf. §1º do artigo 66 do RIR/18. O RIR/99, no §1º do artigo 73, limitava-se a determinar que "se forem pleiteadas deduções exageradas em relação aos rendimentos declarados, ou se tais deduções não forem cabíveis, poderão ser glosadas sem a audiência do contribuinte".
[9] Argumentação declinada no voto vencido do seguinte precedente: Acórdão nº 9202008.004, Cons.ª Relª PATRÍCIA DA SILVA, Redatora Designada Cons.ª MARIA HELENA COTTA CARDOZO, sessão de 19 jun. de 2019 (voto de qualidade).
[10] Acórdão nº 9202003.693, Cons. Rel. GERSON MACEDO GUERRA, sessão de 27 jan. 2015 (unanimidade). O mesmo entendimento é visto no voto vencido do seguinte julgado: Acórdão nº 9202-008.063, Cons.ª Relª PATRÍCIA DA SILVA, Redator Designado Cons. PEDRO PAULO PEREIRA BARBOSA, sessão de 25 jul. de 2019 (voto de qualidade).
[11] Acórdão nº 9202-008.311, Cons. Rel. PEDRO PAULO PEREIRA BARBOSA, sessão de 24 out. 2019 (voto de qualidade).
[12] Acórdão nº 2802001.934, Cons. Rel. JORGE CLAUDIO DUARTE CARDOSO, sessão de 16 out. 2012 (unanimidade).
[13] Idem.
[14] Acórdão nº 9202-008.311, Cons. Rel. PEDRO PAULO PEREIRA BARBOSA, sessão de 24 out. 2019 (voto de qualidade).
[15] Idem.
[16] Idem.
[17] Acórdão nº 2202-005.320, Cons. Rel. MARTIN DA SILVA GESTO, sessão de 6 ago. 2019 (unanimidade).
[18] Exigência de emissão de nota fiscal, por exemplo. Cf. Acórdão nº 2001-003.939, Cons. Rel. ANDRÉ LUIS ULRICH PINTO, sessão de 26 jan. 2021 (unanimidade).
[19] Em um caso apreciado pelo Carf esclareceu o contribuinte que, de modo não peculiar, "trocava cheques em casas de comércio onde era cliente e depois fazia os pagamentos em espécie aos profissionais de saúde". Cf. Acórdão nº 2401-007.393, Cons. Rel. CLEBERSON ALEX FRIESS, sessão de 17 jan. 2020 (por maioria).
[20] Acórdão nº 9202007.803, Cons.ª Rel.ª MARIA HELENA COTTA CARDOZO, sessão de 24 abr. 2019 (unanimidade).
fonte: Conjur
extraído na íntegra
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