Artigo: Bolsa e Quotas para Vítimas

Terça, 22 de Outubro de 2013

Por José Eulálio Figueiredo de Almeida, Juiz de Direito.


A violência é um tema instigante e, por isso mesmo, multidisciplinar. A discussão sobre suas causas, seus efeitos e soluções tem sido suscitada por todos os ramos do conhecimento e por todos os segmentos sociais, ao longo da existência humana. É possível encontrarmos exemplos da violência e da criminalidade, seu epifenômeno, em livros religiosos ou em tratados científicos, em impressos jornalísticos ou em adesivos comuns, sempre procurando, no fundo, conformá-la dentro do quadro da evolução social em que se propaga ou no grau de desenvolvimento do grupamento humano em que se manifesta.
O fenômeno, como sabemos, é social. Dentre as instituições sociais conhecidas que podem colaborar no combate à violência se destacam a família, a escola, a Igreja e o Estado. A este, como ente jurídico encarregado de elaborar as políticas públicas tendentes à consecução do bem-estar comunitário e à higienização social, cabe eleger as condutas que irão inibir a ocorrência da prática criminosa.
Mas é sabido que os interesses do Estado são diferentes dos interesses da sociedade, dos delinquentes e das vítimas destes. Ao poder público interessa apenas a punição do infrator sem auscultar a opinião do ofendido (direto e indireto), o qual se torna, também, vítima dessa sanção estatal, por meio de um sofrimento semelhante ao que é imposto ao doente que recebe o receituário médico, mas não tem dinheiro para comprar o medicamento. Diante disso, ninguém se apercebe - nem mesmo o juiz que condenou o infrator - que a vítima foi marginalizada.
A vítima penal nem sempre tem importância para o processo. É esquecida pelo direito penal material e processual, pelas políticas criminais e sociais, pelas ciências criminológicas e correlatas. Em suma, pelo Estado (que se apropria do conflito) e pela própria sociedade (que a despreza). O direito penal contemporâneo é unilateral, voltado apenas para o infrator.
Somente as vítimas funcionais interessam ao processo e à criminologia midiática, servindo de trampolim para políticos, para policiais, para membros do Ministério Público, para Juízes e para a imprensa. Eles fazem-na de heroína ou de mártir, mesmo que a gravidade do delito tenha lhe causado um dano psíquico considerável, que, muitas vezes, exige reparação imediata e assistência especializada para restabelecer sua saúde.
Quando a vítima do crime violento não colabora com esse estado de coisas, ou quando descobre, no meio do caminho, a intenção de tais agentes, a mesma é excluída, abandonada, desprezada, descartada, passando a compor o catálogo dos esquecidos e a acreditar que foi irracional ao consentir no comportamento em que incorreu.
Nossa manifestação, neste minúsculo artigo, no entanto, se deterá sobre a defesa da assistência educacional à vítima, seus dependentes e herdeiros. Com efeito, desde a sua publicação, em 05.10.88, a Constituição Federal dispõe em seu art. 245:
"A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito."
Inicialmente deve ser dito que o dispositivo em destaque contempla unicamente a assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, deixando desamparada, ab absurdum, a própria vítima, assim como a vítima de crime culposo. Embora discriminatório e restritivo, prevê a elaboração de lei que disporá sobre as hipóteses em que o Poder Público dará assistência às pessoas que enumera.
Mas só isso não basta. Na verdade, a assistência de que fala a regra sobredita ainda não foi cumprida por falta de lei. Nesse contexto, deve ser incluída, quando da elaboração da lei, por questão de política governamental, para evitar a marginalização, assegurar existência digna e reduzir as desigualdades sociais (art. 3º, III, da CF), a hipótese de acesso de tais pessoas a todos os níveis da educação nacional, por meio de quotas nas escolas e universidades públicas, a título gratuito, tal como já se garantiu aos indígenas e aos afrodescendentes. O espírito da norma constitucional admite essa concepção, porque o importante, nesse caso, não é apenas examinar a expressão literal ou gramatical do art. 245, mas perscrutar nas entrelinhas de sua redação qual a intenção do legislador na promoção do bem de todos.
Destarte, a regra insculpida no dispositivo constitucional supracitado comporta, sem discrepâncias, interpretação extensiva e teleológica, uma vez que tem como objetivo conferir a vários indivíduos que se encontram excluídos do sistema educacional as mesmas oportunidades concedidas às minorias, colocando em pé de igualdade as situações vivenciadas por eles, circunstância que, a rigor, permitirá que se cumpra o objetivo da norma constitucional e, mais que isso, se dê ênfase ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, III, da CF. É que, na forma republicana de governo, como a nossa, os direitos dos cidadãos, reconhecidos na Constituição do país, devem ser paritários, porque resultam da soberania do povo.
Com efeito, a educação é direito de todos e dever do Estado e, por isso, deve ser estendida precipuamente àquelas pessoas que dela estão privadas, pela ausência do suporte econômico que o familiar vitimado lhe oferecia; ou pela extinção do parente ou, ainda, por força de debilidade ou enfermidade permanente, provocados na vítima pela conduta dolosa de meliantes, aproveitando-se da inércia do sistema de segurança pública que não foi capaz de evitar o infortúnio.
A propósito, é conveniente lembrar que inexiste em nosso país legislação específica ou política protecionista em prol da vítima. Não há sequer papel para a vítima no processo penal, considerando que Estado e infrator são as partes eleitas na relação processual. Na verdade, o sistema penal acusatório afasta da justiça o vitimizado, vale dizer, importa-se, exclusivamente, com o infrator, suprimindo do seu foco a vítima e a comunidade afetadas pelo delito.
A vítima ingressa na sala de audiência como um cego que é colocado num quarto escuro, para procurar um gato preto que não está lá ou que não existe. Ou seja, muitas vezes, a vítima busca algo que acaba não encontrando, porque a linguagem hermética do direito torna-a estranha ao ambiente judiciário, deixando-a isolada, excluída e inerme, como se estivesse entre pessoas que falam outro idioma e que vivem em outro país.
Na maioria dos casos, a vítima é odiada pelo infrator, o qual atribui sua segregação à delação daquela. Ocorre que, nem sempre, a vítima deseja a prisão do agressor, mas apenas que o mesmo seja chamado para um diálogo, para uma negociação, para uma conciliação, para um aconselhamento. Como a vítima não é ouvida sobre essa questão, sua opinião pouco importa para o organismo estatal, cujo regime penal disciplinar reproduz certos horrores e só serve para impor labéu ao infrator.
Há de se destacar, também, que, nessa perspectiva, compete ainda ao Estado contribuir para manutenção de órfãos (frutos da vitimização secundária) que estão fora da escola e que, muitas vezes, não têm sequer o que comer em suas humílimas moradias, mediante o pagamento mensal de verba que chamaria de auxílio-vítima, a exemplo do que já é praticado em favor do condenado, que recebe, na forma da lei e, sem qualquer compensação tributária, o denominado auxílio-reclusão.
O certo é que a vítima incomoda e molesta. Por isso é desprezada pelo sistema e ainda não alcançou o mesmo status de proteção jurídica do criminoso. O abandono da vítima leva a um fenômeno chamado de vitimização secundária. A omissão do Estado em conferir, por meio de legislação pertinente, à vítima tratamento isonômico em relação ao auxílio-reclusão, que é destinado aos condenados, assim como a quotas educacionais nas instituições públicas, que são destinadas aos indígenas e aos afrodescendentes, representa ofensa ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e coloca a vítima numa situação desprezível, vale dizer, descartável e de menor importância para o organismo social.
Finalmente, é imperioso dizer que é comum vermos cadeias e presídios serem visitados por autoridades e por membros de outras entidades. Não se tem notícia que tais agentes visitam vítimas ou seus parentes para se informarem sobre suas necessidades ou sobre sua inclusão em algum programa assistencial. A proposta de elaboração do projeto de lei, em nível federal, está lançada. Qual parlamentar a abraçará?








Fonte:/Blog Promotor de Justica
originalmente publicado em 14.10.13
na íntetra

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