Direito Penal Absurdo

Este é um bom tema, retirado de uma história real, para os mestres discutirem em sala de aula.



Direito penal absurdo
Paulo Miguez, de Salvador (BA) [1]

O cenário: Salvador, Vara de Execuções Penais.
O ator principal: um homem jovem, aproximadamente 30 anos, negro.
A cena:
- Fui condenado a cumprir um ano e oito meses de prisão em regime aberto. Cumpri a pena todinha. Fiquei em casa. Sobrevivi fazendo bicos. Durante todo este período não cometi qualquer crime. Estou limpo. Vim aqui para requerer o documento de extinção da minha pena.
- Como assim, cumpriu a pena?
- É, cumpri a pena. Um ano e oito meses sem sair de casa. Rua só para fazer um bico aqui outro ali, mas sempre nas redondezas. 18 meses sem nem uma confusão. Sem uma cervejinha. A senhora pode confirmar tudinho com o pessoal do meu bairro e com o posto policial que tem lá.
- Ficou em em casa?
- É, em casa.
- Sinto muito. O senhor ainda não cumpriu a pena. No regime aberto, o senhor está autorizado a passar o dia na rua. Mas à noite, e nos finais de semana, teria que ter se apresentado na Casa do Albergado. É a lei.
- Mas moça! Fiquei em casa, dormi em casa, me virei com biscates e com a ajuda da família e dos vizinhos, não bebi, não fiz nada contra a lei, como não cumpri a pena?
- Pois é. Não cumpriu. E vai ter que cumprir. Todinha! Um ano e oito meses. Durante o dia na rua. À noite, e também aos sábados e domingos, ficará na Casa do Albergado.
- Como é que eu faço agora? Sem o documento que atesta a extinção da pena não posso voltar a minha vida normal. Não posso procurar trabalho, não posso fazer mais nada. Tenho família, quero voltar a estudar... Tô limpo, moça.
- Lamento! Para a justiça o senhor é um fugitivo. Pode ser preso a qualquer momento.
- Mas, e aí? O que eu vou fazer agora?
- O senhor tem duas opções. Posso chamar o policial que está ali na entrada e ele lhe dará voz de prisão. Ou o senhor pode sair pela porta por onde entrou e simplesmente desaparecer.
- Mas vou viver como fugitivo o resto da vida?
- É. Vai sim. E aí? Chamo o policial ou vai aceitar minha sugestão de sair rapidinho daqui?
Teatro do absurdo? Não. O caso é verdadeiro. É o sistema penal brasileiro em cena. Um cidadão cometeu um crime que, pela pena imposta - um ano e oito meses em regime aberto -, deve ter sido de baixíssima gravidade. Não voltou a cometer crimes, o que pode ser facilmente comprovado com uma rápida investigação nos registros policiais e com depoimentos da comunidade. Permaneceu o tempo da pena em casa, tendo optado pela solidariedade da família e da comunidade para iniciar seu retorno à vida normal. Todavia, descumpriu a obrigação de passar as noites e finais de semana sob a tutela do Estado, na Casa do Albergado.
Absurdo, mas real, insisto. Se comprovado que não voltou a delinquir, qual a razão para o Estado não considerar que este homem pagou pelo crime que cometeu e pelo qual foi condenado? O que a Casa do Albergado pode dar a alguém condenado a cumprir pena em regime aberto em termos de acolhimento solidário, atenção e controle que não possa ser oferecido pela família e pela comunidade e em melhores condições? O que justifica transformar este homem em fugitivo?
Só encontro uma única explicação. A avassaladora volúpia punitiva que domina a sociedade brasileira e que é alimentada pela obtusidade do sistema penal e pela espetacularização diária com que a grande imprensa trata da questão da segurança pública. Aliás, duas explicações. A segunda... bem, trata-se de alguém que pertence às "classes perigosas". É pobre e negro.

Publicado no Terra Magazine, 07.07.2011.


[1] Paulo Miguez é doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas. Atualmente é professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA e coordena o Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (UFBA). Foi assessor do ex-ministro da Cultura Gilberto Gil e Secretário de Políticas Culturais do Ministério da Cultura entre 2003 e 2005.

extraído do blog gerivaldoneiva,
em 13.07.2011

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